quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Planície.


O resto de nós procura um lago
que já secou.
Muitos morreram de sede.
Outros disseram:
"não tem água, vá embora!"
E assim, o mundo girou.
Nunca será culpa nossa.
Divindades já disseram
que o homem não tem culpa.
que os pais serão perdoados.
que as mães serão esquecidas.
filhos e filhas abençoadas.
Batizadas nas secas terras
das cadavéricas planíces
Ninguém se lembrará mais
que gosto tinha, como era
e que felicidade trazia.
Ninguém se lembrará mais
da sua doçura incauta.
translúcida, inodora.
sem alma, porém
a alma de tantas coisas

O resto de nós desistiu.
O lago secou.
Nosso destino está escrito,
nestas duras terras da planície.
letras que nada além do vento levará.

O resto de nós partiu.
e ninguém nunca mais ouviu
histórias dos que se foram.
dizem que encontraram fartura
mas os que disseram morreram sem desmentir.
nunca ninguém voltou
nunca ninguém ousou ir

E eu cá estou.
Observando os últimos minutos de vida
de um pobre coitado
que apenas uma última mulher
um último gole
um último sorriso
desejaria antes de partir.

E cá estou
sacrificando o moribundo.
para que ele não sinta mais a dor
que é estar vivo neste mundo.

Cá estou
como próximo da fila
com sede, fome e raiva.
de não ter ido e nem ter ficado.
ter pirado.
enlouquecido na nostalgia
de um tempo melhor do passado
que nunca existiu.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Desunidade





Restos caminhantes de mendigos pútridos.
Ah meu centro da cidade, como senti sua falta.
De lá para cá, os homens estúpidos.
Que, de suas janelas, lançam as latas.

O gosto de sal na boca, suor de longas caminhadas.
Na pele o sol arranha com suas unhas desgastadas.
O mijo no canto das paredes e nas garrafinhas amarelas.
O brilho da pele, o marrom da sujeira e suas sequelas.

Mas eu tinha saudade do meu centro da cidade.
Eu tinha saudade daquele inferno imundo.
Uma cuspida no rosto, a mais pura verdade.
Quando se caminha dentro do poço, aproveita-se o fundo.

Agora na beira do abismo, com água suja até as canelas
Olhando o mar de morte e desilusão, espesso no fundo das panelas.
Saudade da dor de pisar num prego, numa calçada, em lugar nenhum
Na multidão nunca seremos um.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Poema do retorno


De volta.
Tentando não enlouquecer.
Tentando esquecer.

Derretendo por dentro.
Derretendo.
Três da manhã de um dia sem significado.

De volta.
Morri e retornei.
Desejo morrer novamente.

Quero ver o céu dos anjos.
Quero sentir o calor do inferno.
Não quero rimar, não sei o que quero.

Desejo.
Tolice, as águas ainda irão cair.
O sono das tempestades noturnas.

Deus está sorrindo, queima seus seguidores.
Não haverá nada quando o eterno retorno começar.
Não haverá nada, nem temperos, nem sobras.

Não haverá sorrisos nas madrugadas.
Não haverá amor.
Não haverá...

Ainda sobrará um desejo, opaco, branquelo.
Afoga-se e desaparece no inconstante.
Perde-se...

Agora, de volta.
Agora de novo.
Nunca ou jamais.

Em breve...

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O músico ignorado


Tudo inicia-se com o barulho de um zíper.
Todos conversam e sorriem, as mesas são pequenos centros de atenção, muitos riem, muitos acenam, um casal se beija, outro casal se beija. A senhora se incomoda com a demonstração de amor e afeto de jovens numa mesa mais distante. Ninguém, de fato, se importa um com o outro. Como disse, ali é uma galáxia de pequenos pontos luminosos .
As torres de chopp lembram prédios gigantescos e amarelos, os sabores se misturam, crianças conversam, adultos conversam. O barulho da microfonia e o músico arrumando o seu lugarzinho são quase despercebidos naquele mundo imenso.
 Sorrisos.
- Boa noite!
No ar o cheiro da fritura se mistura ao ar condicionado. Garçons fazem contorcionismo para passar entre as mesas trazendo suas bandejas do Mcdonalds, o "M" sempre está virado para você. Mastiga-se, mastiga-se. Ele tem oito anos de idade, está com sua tia para comprar roupas no shopping quando o pior acontece.
O violão já está fora da capa, sua madeira brilhante, os cabos ligados nas caixas de som, o copo de cerveja sobre o banquinho. Ele diz:
- Boa noite!
Chão sujo! Ele tinha oito anos quando o pior aconteceu, o refrigerante caiu, o garoto chorou, a tia disse que tudo bem e pediu outro. Mas o refrigerante morto ainda estava lá, logo seus restos mortais já estariam limpos, e com a rapidez da faxineira, o chão não ficaria grudento, porém, mesmo assim, todos que passam olham para o cadáver daquele copo de Coca-Cola de 500ml.
A música acabou, por extinto aplaudem, educadamente se diz "obrigado" mas no fundo, ou melhor, na superfície ninguém sabe qual música fora tocada.
- E agora vou tocar para vocês...
O casal de namorados jovem.
Ele a espera há uns 15 minutos. Ela apareceu com seu vestido florido e com seu sorriso, ele sorrira também então beijaram-se. Nada disseram, apenas pediram o que comer. Entreolharam sorridentes, ele brincava com um folheto de plano de saúde, dado no primeiro andar.
- Como foi seu dia?
- Bem, e o seu?
- Ótimo.
Ela nota que esta conversa é a mesma do Whatsapp. Ela nota que é tudo repetitivo. Com o "M" virado para eles, suas bandejas vermelhas sustentavam dois hambúrgueres, dois copos de refrigerante (Diet para ela) e batatas fritas. Ninguém agradece o garçom.
Aplausos. 
Já se foram 18 músicas e duas horas.
- Obrigado, toda sexta-feira estou aqui para tocar o melhor da música para vocês!
Tudo termina com o fechar de um zíper.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Sorrisos

               
               Não mudo a fonte para escrever.
               Talvez se eu parasse de reescrever tanto tais coisas que não ousaria falar.
               Em cada passo profundo, em cada poça, em cada esquina.  Hoje, bem de manhãzinha, choveu. Chove há muito tempo aqui dentro, porém exatamente agora que eu fui notar que minha cidade interior está alagada com tanta água e tantas tempestades.
               Sorrisos falsos de bom dia. Humanidade, quem te conhece já sabes do que és capaz. Ainda sim me surpreendo todas as vezes que assisto o telejornal pela manhã.
               Aquele gosto amargo.
               Não mudo de fonte, uso a primeira que o editor de texto me serve. É uma fonte sem graça, sem nenhuma vida. Uma fonte sem alma. Eu considero tal fonte tão parecida com os sorrisos, com as conversas, com as piadas, com o pálido sol que entra pela minha janela enquanto eu trabalho no trabalho mais inútil da face da terra.
                Não mudo de fonte para falar sobre a inutilidade do mundo, não mudo de roupa para enfrentar os dragões do dia a dia. Dragões estes tão poderosos que me vencem de vez  em quando.  Lá em cima o pálido sol ofuscado pelas cinzas nuvens de uma temporada chuvosa. Logo as lágrimas cairão, escondidas, inúteis, tão inútil quanto o meu trabalho, tão inútil quanto os sentimentos daqueles que eu não conheço. Tão inútil quanto os sorrisos.

               Ainda há algumas cinzas para serem limpas. Tudo se foi com a água dos mares.
               A fofa areia permite deixar marcado por uma pequena eternidade a marca do que eu sou e do que eu fui. Sobre o que eu serei não sei ao certo, não saberei contar até quando eu irei. Tal qual carro desgovernado, o penhasco despenco de maneira cinematográfica, porém não haverá  ninguém para testemunhar. Tão inútil quanto o espetáculo de uma árvore caindo na floresta.
               Tão inútil quanto estes sorrisos.
               Não consigo mais traduzi-los em sentimentos, tais sorrisos são agora uma incógnita, uma grande dúvida, uma grande questão. O que eles deveriam representar? O que eles deveriam ser? Os vejo no ônibus, no meu inútil trabalho, nas conversas de pessoas desconhecidas, porém nada passam de meros códigos indecifráveis, meras movimentações musculares, mera química incompreensível.
               Um punhado de coisas inúteis.
               Um monte de pássaros sem asas.
               Um grão de semente estéril.
               Uma gênio dentre tantos ignorantes.
               Ninguém espera de fato a explosão. Ninguém consegue ver o relógio da bomba diminuir progressivamente até chegar a zero, de fato, o homem-bomba se mascara de sorrisos e de histórias e de piadas e de palavras de “tudo bem” antes de explodir e mudar, ou não, tudo ao seu redor.
               No fim das contas, todos os sorrisos são inúteis.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

O Jesus da TV

                                                                                  Um conto de natal do Míope Psicopata



            Acho que já era natal.
            O que é comum em todos os lugares. Milhares de perus assados, milhares de maioneses prontas, milhares de comidas específicas da época de natal como o próprio Panetone, espalhados pelas mesas, sendo mastigados vorazmente por milhões de bocas que comem e bebem, comem e falam, bebem e gritam, gritam e riem, riem e bebem. Crianças esperando ansiosas para abrir os embrulhos embaixo da árvore de natal, aquela bela e brilhante árvore de natal com milhões de luzes piscando, com milhões de enfeites, milhões de tudo. Sempre haverá o barulho de um refrigerante sendo aberto e algum tio fazendo alguma piada idiota sobre o pavê. Até isso virou clichê em um natal.
            Papai Noel em Russo é “Baboushka
            Acho que já era natal quando o batalhão de choque começou a atirar as balas de borracha. Normalmente as pessoas já começam a correr com o gás lacrimogênio, mas estas pessoas eram persistentes, elas permaneceram, elas se mantiveram protestando até mesmo quando as balas de borracha começaram a derrubar um ou outro. As pedras voaram em direção à delegacia destruindo toda a fachada linda e inútil que o querido Governador fizera o prazer de reformar. Lá fora, estas pessoas que trocaram o natal em família por violência gritavam: libertem o Messias.
            Mas para esta história fazer sentido, eu preciso voltar alguns meses no passado.
            Era sexta-feira, eu acho. Minha licença estava acabando, eu tinha levado um tiro de um bandido, há algum tempo atrás, então tive que ficar de molho em casa repousando. Não que eu não goste de ficar em casa, mas para um cara de quarenta anos, divorciado, ferido, ficando careca e ganhando peso, não é tão agradável assim. Antes que eu comece a reclamar mais, vou tentar ir diretamente ao ponto, alias, acho que era um sábado. Eu estava tomando minhas cervejas, comendo meus salgadinhos e assistindo um daqueles programas sensacionalistas de auditório. É comum aparecerem os seres mais bizarros do mundo, um cara que disse que era alienígena, outro disse que roubaram um rim dele. Um dos casos mais famosos foi do sujeito que esteve casado durante quinze anos com um travesti sem saber. Sim, este era o nível do programa. Enfim, a pauta do dia era de um cara que falava com muita convicção que era Jesus Cristo.
            Papai Noel em holandês se chama “Kerstman”
            Minha ex-mulher fazia parte de alguma congregação pentecostal de algum vigésimo selo perdido em algum lugar. Quando eu a conheci era tão pecadora quanto eu. Gostava de beber e fumar igualzinho a mim. Este lado errado nela foi o que mais me chamara a atenção. Na época, ela era morena, alta, parecia ter fortes traços africanos apesar de ser mais brasileira do que o frevo. Tinha um sorriso muito forte, transmitia uma personalidade marcante em cada gesto, em cada movimento, sempre muito sensual. Eu a atrai com o uniforme. Sim, o uniforme ainda é um afrodisíaco poderosíssimo. Depois de quinze anos de casados ela se converteu para esta seita cristã maluca. Fechou seu corpo para Cristo. Ainda bem que nossa filha já tinha nascido porque acho que nem ela conseguiríamos fazer. Começou a usar saias cumpridas, prender o cabelo e dizia sempre que não entrava bebida na nossa casa.
            Tinha sido o fim da minha cerveja de domingo.
            Me arrastava para os cultos. Minha casa sempre estava lotada de gente desconhecida, sempre havia um ou outro líder religioso genérico que me abria um largo espaço de desconfiança. Dava meu dinheiro para igreja como dízimo, arrastou minha filha também, que começou a andar quase como se fosse um clone da mãe. Queimou meus livros de ficção cientifica do qual eu colecionava desde a adolescência. 
            Sua tese para o divórcio foi dizer que eu estava com o demônio no corpo.
             Papai Noel em finlandês é “Joulupukki.”.
            - Tem alguma prova que você seja o Messias? – a apresentadora fazia a pergunta com aquele ar ingênuo ensaiado. Claro que o Jesus da televisão tinha uma resposta pré-pronta cheia de curvas. Ele não respondeu nada diretamente, mais evasivo que um político ou um policial corrupto ele soube se desviar de todas as polêmicas. Quando chamaram os pesquisadores sérios da religião cristã, ditos como teólogos, ele soube se safar de alguns questionamentos de maneira bem pobre, mas convincente.
            - Você já fez algum milagre? – pergunta a apresentadora.
            - Posso fazer um agora, aqui no palco – nesta hora me engasguei. Essa eu queria muito ver.
            O Jesus da televisão se levanta,um grupo de quatro meninas muito bonitas, mas com o rosto do qual já fizera muita besteira no passado, retira o manto vermelho que ele carrega sob os ombros. Era um sujeito bem magro e bem alto, cabelos lisos e loiros, muito bem tratados.Se duvidar, mais bem tradados do que os cabelos da minha filha. Seu rosto ossudo realmente parecia ser de outro lugar, Alemanha talvez, e tinha olhos azuis profundos e bonitos, realmente um retrato alemão de Jesus Cristo.
            Papai Noel em alemão é “KrissKringle” ou “Weinachtsman”.
            Uma das garotas com cara de prostituta trás um cálice muito bonito, dourado com ornamento de pedras vermelhas. O Jesus da televisão pede uma garrafa de água mineral com marca mais genérica do que o líder religioso citado anteriormente. Ele faz alguns gestos Coperfildeanos em volta da garrafa e faz uma reza em algum idioma que ele acredite que exista.
             Minha ex-mulher dizia que falava línguas.
            Lentamente ele derrama a água no cálice e o silêncio no estúdio pode ser ouvido. Até mesmo os especialistas se calam. Todos estavam muito atentos ao que poderia acontecer, dali em diante poderíamos receber a grande revelação. O Jesus da televisão olha para a câmera de maneira ensaiada e desafiadora, ele tenta esconder um sorriso maquiavélico o máximo possível, ele tenta forçar seriedade, mas eu convivi com estas pessoas durante muito tempo para saber o que iria acontecer.
             Ele chama a apresentadora, ela se aproxima de uma maneira humilde, a mesma humildade que ela utiliza para menosprezar os seus assistentes. Ele entrega o cálice para a mulher e ela bebe. Seu rosto se contorce de uma maneira engraçada, parecia o Jim Carrey no Máskara.
            - E vinho! – e todos aplaudem o Jesus da televisão de pé. A câmera focaliza o líquido roxo dentro do cálice, os especialistas se entre olham com um ar sarcástico. O circo estava feito.
            O mal estava feito.
            Papai Noel em Frances é “Père Noel.”
            Antes de mais nada, deixa eu explicar como funciona o milagre: No fundo do cálice havia xarope de suco de uva, era uma espécie de fundo falso. Quando você derrama a água no cálice e ele invade este fundo falso, a gravidade se encarrega de misturar as duas partes de forma homogênea, ele faz uma mexidinha ali e outra lá e pronto, você tem vinho e do melhor tipo: sem álcool. Este truque está no segundo DVD do Mr. M, ganhei-o num amigo secreto. Claro que aquela palhaçada toda era só para tomar um pouco mais de audiência, claro que ninguém levaria a sério e todo mundo esqueceria no outro dia. Claro que nada daquilo faria sentido.
            Lembrei-me disto quando, mesmo com o gás lacrimogênio, as pessoas furaram a primeira barreira e começaram a bater na porta da delegacia. Da minha janela eu via uma velhinha de uns setenta anos agredindo um policial do Choque. As pessoas brandiam espadas de papelão com papel alumínio imitando o metal. Gritavam palavras de ordem, palavras de cunho bíblico. Alguns gritavam “libertem Jesus”, pessoas com cartazes, papéis. Alguém joga um coquetel Molotov que incendeia um carro ao se partir. Estávamos entrincheirados, do lado de fora uma massa furiosa,quase como zumbis hollywoodianos prontos para nos atacar, todos gritavam furiosamente.
            - Já é natal?  - pergunto para um dos meus colegas que estava entendendo cada vez menos aquela loucura.
             Eu queria muito ligar para minha família, peguei o pior turno por causa da loucura que estes últimos dias foram. Queria muito falar com minha ex-mulher, com minha filha. Queria muito dizer “feliz natal”, queria muito falar algumas palavras legais, falar coisas das quais não digo há muito tempo. A porcaria do trabalho acabou me soterrando, ainda mais depois dos últimos dias. Desde que me divorciei eu não nego que me distanciei um pouco. Acabamos nos afundando no trabalho para esquecer as mágoas da vida. Isso é um fato. Todo que eu conheço que são viciados no trabalho é porque não possuemum bom ambiente em casa. E eu estava virando turno após turno. Ganhando um dinheiro do qual eu não iria usar.
            Mas lembrei de que não haveria ninguém em casa, hoje teria algum culto de alguma coisa.
            O reforço chegou com carros de bombeiro atirando jatos de água na população enfurecida, eles se deitam no chão e começam alguma reza forte. Começam as nos chamar de satanistas, de romanos. Ainda bem que não xingaram minha mãe. Observo tudo isso da janela. Na televisão uma loucura, todos os repórteres obrigados a perderem o natal estão dando as últimas notícias, se engasgam com o gás lacrimogênio. A cobertura completa da televisão com tudo que se precisa para cobrir. Toda a loucura, o palco está pronto. Parece que tudo fora armado para isto, claro que estou fazendo conjecturas tão insanas neste ponto. Eu queria realmente estar comendo alguma coisa gostosa, um pavê por exemplo.
            - Está feliz com tudo isso? - pergunto ao homem algemado na cadeira. Não pudemos coloca-lo em uma cela para não criar uma baderna maior do que esta. O Jesus da televisão dá um sorriso sarcástico escondido dentro daquela barba. Ele olha para mim com uma cara de piedade pior do que a de um cachorro. Eu lembro como este sorriso me incomoda, é o mesmo sorriso do pastor, aquele sorriso de “venha, sou a salvação”.
            - Não fico feliz com a selvageria meu nobre, mas isso prova que o povo sabe quem eu sou - ele fala cada palavra lenta e calmamente.
            Papai Noel em japonês é “Jizo”
            Aquele programa de televisão causou mais impacto do que podia-se imaginar. Talvez pela falta de fé das pessoas no futuro ou por causa da busca de um ponto de referencia para tudo as pessoas deixam o seu senso crítico de lado e passam a adorar tudo aquilo que convém, uma maneira simples para anestesiar a dor, quase como uma das milhares de drogas que são aprendidas. A experiência religiosa se tornando um novo ópio social, um ópio para as camadas menos desenvolvidas que precisam de algo para se agarrar. Todas elas se abraçam fortemente o mastro do Titanic.
            Ciência, lógica, pensamento cientifico? Tudo é coisa do capeta, dizem.
            Quando menos percebi, havia uma matéria do Jesus da televisão, tinha acabado de montar um templo milionário no centro da cidade, milhões de fiéis vindos de todas as partes do país, todos em adoração esperando um milagre. Obviamente que minha ex-mulher e minha filha também faziam parte, se agarravam a todo tipo de ilusão. Logo o Jesus da televisão tinha seu próprio programa dominical, tinha sua audiência. Suas palestras valiam milhões. Fazia passeata na Paulista, fazia viagens. Havia seguidores deste cara em todas as partes. Engraçado ver todas as outras igrejas e templos que faziam campanhas gigantescas demonstrando a farsa que este cara era. Programas de televisão inteiros mostrando a vida desse sujeito, falando da família dele, seu nome verdadeiro, o que ele era. 
            Operava milagres no seu templo. Minha filha acabou me arrastando uma vez, vi com meus próprios olhos truques de hipnose e truques de puro charlatanismo. O velhinho que ele tirara da cadeira de rodas foi o mesmo que eu prendi tempos atrás por tráfico de drogas e acredite, ele corre muito bem. Cirurgias espirituais, venda de água mística, venda de pano místico. Não sabia ao certo o que aquele templo era de verdade, uma feira livre ou um lugar de culto religioso. Ele se dizia reencarnação do Messias, logo depois dizia que era o próprio e que nunca tinha morrido. Teólogos de plantão teriam um derrame ao ouvir tais coisas. As pessoas o seguiam de maneira cega, tratavam-no como rockstar. Queriam autógrafos, queriam benção tudo se tornou uma loucura maior do que se podia imaginar.
            Acredito que nem ele sabia ao certo à proporção que isso estava tomando. Vendo por outro ponto de vista, acho que tudo, a princípio, não passaria de um golpe, uma pequena bobagem para ganhar um pouco de fama e alguns trocados. Porém com o tamanho e as proporções que tudo começou a tomar, ele mesmo perdeu seu eixo. Dizem que se você conta várias vezes uma mentira, ela acaba se tornando verdade e talvez isto tenha acontecido. Contou tantas vezes a mentira que ele começou realmente achar-se Messias, começou realmente a acreditar no que dizia, que estava criando uma nova religião.
            Neo-Cristianismo, chamou. Seu símbolo era uma cruz com um círculo em volta.
            Mandou imprimir uma nova bíblia contando sua história de vida, era uma biografia boba que se tornou best-seller. Até o Papa falou sobre ele no vaticano. Disse alguma passagem da bíblia sobre falsos profetas. O que a inveja não faz?
            Na Itália eles tem duas maneiras de dizer Papai Noel: pode ser tanto “Belfana” quanto “Babbo Natal”.
            Talvez o ponto onde subiu a cabeça tenha sido um problema maior, talvez sua loucura em dizer ser o filho de Deus, ou de algum deus tenha o levado longe demais. Talvez alguém tenha tentado se aproveitar de sua fama e inventado mentiras a seu respeito e dera certo, talvez alguém tenha tentado extorqui-lo ou não. Nunca saberei realmente o que aconteceu, mas não demorou muito para aparecer na televisão: “Jesus estuprador, vítima diz ter sido violentada em um dos seus cultos”
            Claro que uma declaração de guerra contra alguma nação Islâmica não teria sido tão bombástica quanto.
            A vítima era uma garota com cara de passado conturbado. Parecia ter sido viciada em alguma droga pesada por muito tempo. Seus olhos fundos e seu rosto magro, sua maneira esquálida e confiante de falar. Era claro que a mentira pairava no ar, o Jesus da televisão tinha conseguido um oponente a sua altura, sua Maria Madalena mais que merecida, porém com o apedrejamento inverso. Quem nunca pecou que fale isso no Twitter. Sua história era convincente, sempre mantinha os mesmos detalhes, sempre chorava e engolia seco no final. A repórter abraçava-lhe como uma irmã, pessoas se revoltaram, outras disseram que era mentira.
            Eu não simpatizava nenhum pouco com o Jesus da televisão, mas eu sabia que era uma farsa se chocando com a outra.
            Eu sabia que nada aquilo seria verdade, o cheiro de problema veio longe.
            E começou a guerra da televisão. Anúncios, revistas, entrevistas, pessoas falando. A mídia ardia de uma forma nunca mencionada. Nosso DP foi incumbido de executar o mandado de prisão, e assim o fizemos. Fomos pega-lo no templo com uma população de uma pequena cidade protestando, quebraram um carro de polícia, tivemos que prender mais umas trinta pessoas por baderna. Televisão, mídia. Um inferno.
            Minha filha parou de falar comigo.
            Os jornais sensacionalistas apontavam o dedo, diziam sobre o crime do falso Messias, as pessoas apontavam o dedo, diziam que éramos hereges, que prendemos o filho de Deus. Neguei por várias vezes entrevistas por revistas famosas, tentaram por várias vezes me dar dinheiro para isto, mas eu queria me manter distante, eu sou apenas o narrador de uma história bizarra e não um personagem propriamente dito do mesmo.
            O interrogamos mas nada dizia de concreto. No fundo eu sabia que ele não encostou um dedo na garota, ela estava tentando se aproveitar da fama do Jesus da televisão. Ele começou a acreditar na mentira, ele tinha se deixado levar. Ele realmente acreditava que iria salvar o mundo de nós mesmos. Ora, nem o Jesus de verdade conseguiu, este cara ira conseguir?
            Enquanto o interrogávamos ele olhou para mim, olhou no profundo dos meus olhos e disse meu nome. Observei-o.
            - Você me parece muito incrédulo – nisto ele acertou – sua descrença vai te levar para a miséria. Eu sei que você é um homem sisudo, acredita muito na lei e na ordem, gosta de pensar que tudo gira ao seu redor. Também vejo que é um bom pai de família, deve ter uma filha e um cachorro, acho que é divorciado. Também não gosta muito de frequentar a igreja, estou certo.
            Todos em minha volta arregalam os olhos, todos olham para mim, olham para o Jesus da televisão de maneira assustada. Eu apenas dou um pequeno suspiro.
            - Vocês acreditam neste cara?
            - Mas ele te descreveu por completo – diz um dos meus amigos do futebol. Ele realmente não me conhecia tanto para saber se ele tinha me descrito por completo.
            - O nome disto que ele faz é leitura fria, eu já li sobre isso. Usam palavras genéricas que serviriam para qualquer pessoa e alguns dados mais aprofundados ele deve ter ouvido da minha esposa que é seguidora dele – pego um papel na mesa e escrevo um número enquanto vejo o sorriso do Messias secretamente murchar – pronto. Eu escrevi um número neste papel, você consegue adivinhar qual número é este?
            O rosto do Messias primeiro fica murcho, depois se levanta comum vigor estranho e incompreensível, olha para mim profundamente como qual buscasse a melhor resposta.
            - Não responderei porque os poderes consentidos pelo pai para mim não são para fazer mídia – e assim falou o Jesus da televisão.
            Papai Noel em espanhol é “Papa Noel
            Enquanto a confusão do lado de fora piora eu penso em mim mesmo. Penso em uma profunda solidão, penso nas pessoas que estão neste exato momento se suicidando com os piscas de natal em uma banheira. Enquanto as primeiras pessoas conseguem furar o bloqueio e adentrar na delegacia sendo coagidas por policiais armados com armas de verdade eu penso no que nos tornamos. Acho que não temos culpa de pensar no que chegamos, no nível de maluquice que nossa sociedade acabou criando. Pela adoração por um maluco qualquer que está na televisão nós matamos, nós pilhamos, nos tornamos distante daquilo que nos diferencia entre animais racionais ou irracionais. Pode ser pelo Jesus da televisão como por um time de futebol, por dinheiro, por uma banda de música, por uma ideologia ou partido político. Estamos brigando por coisas tão fúteis e sem sentido. Não sei se o Jesus da televisão se arrependeu por algo que fez, a fé transforma as pessoas em seresirracionais que andam num caminho sem volta, não se arrependem por acreditarem em uma salvação.
            Pensei em todos que estão dizendo “feliz natal”.
            Com o impasse gerado, os manifestantes querendo entrar e os policiais ameaçando e dando debilmente tiros para cima. Vejo algumas pessoas ameaçarem a tocar fogo no próprio corpo pelo Jesus da televisão,vejo pessoas sendo machucadas pelas balas de borracha, gás lacrimogênio sufocando os pobres repórteres, e até mesmo nós policiais, sitiados nesta situação impossível. Olho para o Jesus da televisão e digo:
            - Você não vai fazer nada!? – ele não responde, ele não fará nada, ele gosta da situação, gosta que briguei por ele. Ele acredita realmente que é um Messias e agora é tarde. Ele está de braços abertos para aquele povo que perdeu sua própria racionalidade. O Messias é uma piada, é uma anedota a fé burra que não busca tentar um mínimo de lógica. Ele sabe que é uma piada. Uma piada contada várias vezes também vira verdade.
            Eu já estava em casa quando falaram que morreram doze pessoas na manifestação de natal contra a prisão do homem que se dizia Jesus.
            Ele foi sentenciado pelo abuso da menina, mas eu não acreditei mesmo depois da sentença. Sim, ele está preso.
            Está escrevendo um livro da sua vida na prisão.
            Já tem um estúdio de cinema querendo transformar sua vida em um filme.
            A prisão onde ele está virou um lugar de peregrinação. Hoje está competindo com o hotel onde apareceu uma mancha de mofo com a cara da Maria.
            Dizem que ele já curou o câncer, a AIDS, que já ressuscitou umas três pessoas e até a homossexualidade já curou, e eu nem sabia que este último era doença.
            Seu CD de músicas abençoadas já é campeão de vendas. Será grande febre no próximo natal.
            Papai Noel em inglês é “Santa Claus”
            Dizem que foi uma invenção da Coca-Cola mas ai eu não posso afirmar nada. 

sábado, 17 de dezembro de 2016

O lado selvagem da vida



I

            Sujos de graxa, cantando como se não houvesse amanhã.
            Sujos, mente poluída.
            Sujos, mente poluída.
            Eram assim que os garotos andavam nas ruas no fim do ano de 2016
            Eram assim que as traças corroíam as roupas novas do fim de ano.
        Quantas gramas de ferrugem é necessário para dizer que algo está realmente velho, quanto precisamos interferir na vida improvável. Nas improbabilidades que se mostram um tanto quanto engraçadas, pragmáticas, sofríveis. Quanto de Ritalina precisamos para que possamos nos concentrar na pequena merda que toda esta grande bosta se tornará.
            Crianças brincando em hidrantes quebrados.
            Carros arrancando às três da manhã.
            Não me deixam dormir, os remédios não me deixam dormir.       
            E as garotas coloridas se afogam no próprio vômito.         
            E os garotos coloridos se beijam e fazem todos ter caras de nojo.
            Ahh como eu queria ser um gênio para escrever uma Ode.
            Notícias tristes de fim de ano.
            Mas o Papai Noel está lá, murcho com uma cara de tristeza, ouvindo milhares e milhares de crianças que ele tem vontade de matar. O Papai Noel usa vermelho para disfarçar o sangue da roupa, o sangue daquelas crianças birrentas que gritam e choram pedindo brinquedos que custariam o salário do mês. Elas querem as bonecas e os bonecos mais caros, elas querem tablets e smartphones de ultima geração para jogarem Candy Crush. Para queimarem suas retinas. Para assistir pornografia às três horas da manha.
              Eita, é o lado selvagem da vida.
              Eita, é o lado selvagem da vida.
            Na saída da faculdade uma mendiga me aborda, com olhos mareadas e voz sibilante, ela não pede esmola, ela pede respeito, ela me diz que não é uma vagabunda, que não é uma ladra, ela simplesmente quer ter dignidade mas o mundo, o mundo é selvagem e não deu dignidade para aquela pobre moça, suja e pobre, suja e nojenta (no lado bom da palavra), suja e suja, suja e com diversos filhos, suja e velha, suja e inútil (no lado bom da palavra). Aquela pobre alma suplicava por respeito gritando com todos que não era uma pessoa má, apenas escolhera alguns caminhos errados. Ela suplicava por perdão a um deus egípcio.
            Dei um real e feliz natal.
            Ela sorriu com seus dentes tortos. Ela sorriu com sua mente torta. Ela tinha prometido para si mesma que nunca mais usaria daquela pedra, ela tinha prometido para si mesma que iria se reformar, que iria se concentrar, que iria estudar e sairia para sempre daquela vida, ela tinha prometido para si mesma que tudo seria diferente, que ela seria uma garota colorida que sairia cantando nos pontos de ônibus “thururu thururu”. Ela sairia da prostituição, dos pequenos crimes, da vida marginal, ela iria concertar os dentes, ela iria sorrir de novo, ela se limparia da graxa e da vida nas calçadas, ela comeria uma refeição descente, ela deixaria de usar A pedra, ela deixaria de usar A pedra… mas usaria só mais uma vez para se despedir.
            O lado selvagem da vida.
            O lado selvagem da vida.
            Está longe dos conflitos dos super-heróis ou do império de Star Wars.
            Está longe das princesas da Disney.
            Está longe dos problemas da Dora Aventureira.
            Está na moeda de um real e sua sujeira.
            Está nos supermercados da América as dez da noite.
            O ônibus lotado.
            O pernil de natal.
            O lado selvagem da vida.
           

                                               II

            Não tem jeito de escapar.
            No começo de 2013 um jovem tentou escapar do lado selvagem da vida. Ele escolheu e escolheu e acabou na lama como tooooooodo muuuuuuundo. Triste jovem, triste humanidade. Ele se matou se matou de uma maneira miserável, se jogou daquele quarto andar tão brilhante e bonito. Hoje está nos portões de Valhalla, sofrendo a batalha eterna. Simplesmente se jogara para os braços de uma vida que não seria dele, simplesmente se jogara. No começo de 2014 milhares de jovens se jogaram, esta era a moda nacional. O lado selvagem da vida tornara-se moda, porém ninguém aguentava de fato o que era isso.
            Os Evangélicos disseram que eles iriam para o inferno.
            Os Católicos estavam preocupados com as crianças.
            E tudo converge.                   
            Os tempos foram mais difíceis, meu avô dissera isso na época das grandes crises nacionais, ou quando militares imbecis tomaram conta do Brasil. Tínhamos tanta fome e tanta sede que não nos faltava palavras. A falta mexe na criatividade, dizia meu avô. A falta mexe na fome, mexe na sede, mexe com as garotas. O preto e branco sempre será um ponto de pragmatismo.
            Existem dicionários de palavras bonitas na internet que os poetas de bosta utilizam para florearem os seus poemas.
            Existem tantas palavras de ódio.
            Milhões de sílabas postas juntas em um torno mecânico para tentarem dizer algo. Meu avô lia o jornal, morreu lendo o jornal. A última notícia do jornal que o vitimou era uma notícia que dizia que o Brasil teria jeito, que o mundo teria jeito, que todos viveríamos felizes. Tal imagem era imensamente impossível de ser visualizada, morreu então.
            Existem tantas palavras de ódio.
            O lado selvagem da vida está convergindo, está atrás de atrações para seu circo dos horrores.
            O lado selvagem da vida não exige uma explicação. Ele simplesmente acontece e está conosco em todos os momentos gloriosos da nossa vida. Está tentando explicar algo que se torna até distope, até torpe, até imbecil. Está nas grandes tragédias e naa mães chorando no programa da Fátima Bernardes. Está no café da manhã e nas pessoas que não conseguem almoçar ao meio-dia, está no Demônio do meio-dia.
            O lado selvagem da vida não exige uma explanação. Ele simplesmente existe, ele simplesmente está. Três da manhã e aquele estampido de morte possui um grande significado.


                        III

            Levante.
            Escolha o dia, o sinal do seu dia que te levará para a eternidade. A primeira coisa que você vê ao amanhecer é o seu amor ao seu lado. Aquele seu quarto rosa que ainda exala um ar infantil para uma mulher já com certa idade, treme na base do estomago com a fome que lhe trás memórias de quando sua mãe preparava todas as refeições. Tudo está quebrado e todos estão dançando lá fora. Está amanhecendo, você não se lembra da última vez que levantou as quatro horas da manhã. Sempre haverá uma madrugada nos meus textos, não reclame. Você não se lembra de nada, mas se lembra de que fora bom, que fora divertido, que fora mágico, que fora algébrico. Todos os axiomas da matemática sorriram para você naquela noite. Fantasmas de antigos deuses estavam nas garrafas de bebidas que você bebeu. Vodka, Úisque, dançar na mesa, Cerveja, vomitar e vomitar e vomitar e vomitar. Algumas drogas fazem parte de ser jovem em 2016.
            Levante. A Netflix pergunta se você ainda quer continuar assistindo.
            Levante. O lado selvagem da vida chegou pelo correio.
            Levante. O despertador do seu celular não vai tocar hoje.
            Levante. Os índios assassinos estão chegando.
            Escolha o dia, o sinal do seu dia que levará para a eternidade. Os carros estarão nos estacionamentos por toda a madrugada, um ou outro alarme tocará e destruirá os sonhos daqueles que dormem tão tranquilamente. Tudo pesa uma tonelada e meia quando se está de ressaca. Os óculos escuros e o gosto de merda na boca.
            Sangro todas as vezes que escovo os meus dentes.
            Nuvens de ferro no céu.
            Uma dança selvagem acontece todas as manhãs e sempre às seis horas da noite. Milhares de buzinas escondem o lado selvagem da vida.
            Mas o lado selvagem da vida está lá.
            Ele irá te matar na noite de natal.
            Ele irá te matar na virada do ano.
            O lado selvagem da vida te observa
            Na calada da noite, pela sua Webcam, te vê trocar de roupa, arrancar o próprio rosto e guardar em um cabide, te vê pelo buraco da fechadura digital, deitada na cama com seu amor pela madrugada, naquele infantil quarto rosa que você julga ser o lugar mais seguro do mundo. Era feriado era feriado. O lado selvagem da vida sorri e sorri.
            O lado selvagem da vida começa de madrugada, com mendigas chorando e usando pedra.
            O lado selvagem da vida começa com garotas bêbadas no meio fio.
            O lado selvagem da vida começa com o homicídio na televisão.
            O lado selvagem da vida está nos chats da Uol.
            Está no programa do Faustão.
            Está no tédio e na morte.
            O lado selvagem da vida te consumirá no sofá de domingo.
            Na estatua da liberdade.
            No atentado terrorista.
            Na queda do avião.
            No poema do blog.
            O lado selvagem da vida está no estupro, no assassinato, na libido dos pedófilos, nos corruptos, sádicos sacanas. Está na verdade nua e crua, no tráfico de drogas, nos presídios e nas ruas, esquinas, becos, bairros, comunidades, favelas, buracos, inferninhos, bares, bebidas, drogas, loucuras, três da manhã, avenidas movimentadas, rachas, morte, sangue, jovens, aborto, vômito, ressaca, talkshows, off-line, snapchat.
            Ele olha para você enquanto dorme.
            O lado selvagem da vida

            Não dorme.