segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

O Jesus da TV

                                                                                  Um conto de natal do Míope Psicopata



            Acho que já era natal.
            O que é comum em todos os lugares. Milhares de perus assados, milhares de maioneses prontas, milhares de comidas específicas da época de natal como o próprio Panetone, espalhados pelas mesas, sendo mastigados vorazmente por milhões de bocas que comem e bebem, comem e falam, bebem e gritam, gritam e riem, riem e bebem. Crianças esperando ansiosas para abrir os embrulhos embaixo da árvore de natal, aquela bela e brilhante árvore de natal com milhões de luzes piscando, com milhões de enfeites, milhões de tudo. Sempre haverá o barulho de um refrigerante sendo aberto e algum tio fazendo alguma piada idiota sobre o pavê. Até isso virou clichê em um natal.
            Papai Noel em Russo é “Baboushka
            Acho que já era natal quando o batalhão de choque começou a atirar as balas de borracha. Normalmente as pessoas já começam a correr com o gás lacrimogênio, mas estas pessoas eram persistentes, elas permaneceram, elas se mantiveram protestando até mesmo quando as balas de borracha começaram a derrubar um ou outro. As pedras voaram em direção à delegacia destruindo toda a fachada linda e inútil que o querido Governador fizera o prazer de reformar. Lá fora, estas pessoas que trocaram o natal em família por violência gritavam: libertem o Messias.
            Mas para esta história fazer sentido, eu preciso voltar alguns meses no passado.
            Era sexta-feira, eu acho. Minha licença estava acabando, eu tinha levado um tiro de um bandido, há algum tempo atrás, então tive que ficar de molho em casa repousando. Não que eu não goste de ficar em casa, mas para um cara de quarenta anos, divorciado, ferido, ficando careca e ganhando peso, não é tão agradável assim. Antes que eu comece a reclamar mais, vou tentar ir diretamente ao ponto, alias, acho que era um sábado. Eu estava tomando minhas cervejas, comendo meus salgadinhos e assistindo um daqueles programas sensacionalistas de auditório. É comum aparecerem os seres mais bizarros do mundo, um cara que disse que era alienígena, outro disse que roubaram um rim dele. Um dos casos mais famosos foi do sujeito que esteve casado durante quinze anos com um travesti sem saber. Sim, este era o nível do programa. Enfim, a pauta do dia era de um cara que falava com muita convicção que era Jesus Cristo.
            Papai Noel em holandês se chama “Kerstman”
            Minha ex-mulher fazia parte de alguma congregação pentecostal de algum vigésimo selo perdido em algum lugar. Quando eu a conheci era tão pecadora quanto eu. Gostava de beber e fumar igualzinho a mim. Este lado errado nela foi o que mais me chamara a atenção. Na época, ela era morena, alta, parecia ter fortes traços africanos apesar de ser mais brasileira do que o frevo. Tinha um sorriso muito forte, transmitia uma personalidade marcante em cada gesto, em cada movimento, sempre muito sensual. Eu a atrai com o uniforme. Sim, o uniforme ainda é um afrodisíaco poderosíssimo. Depois de quinze anos de casados ela se converteu para esta seita cristã maluca. Fechou seu corpo para Cristo. Ainda bem que nossa filha já tinha nascido porque acho que nem ela conseguiríamos fazer. Começou a usar saias cumpridas, prender o cabelo e dizia sempre que não entrava bebida na nossa casa.
            Tinha sido o fim da minha cerveja de domingo.
            Me arrastava para os cultos. Minha casa sempre estava lotada de gente desconhecida, sempre havia um ou outro líder religioso genérico que me abria um largo espaço de desconfiança. Dava meu dinheiro para igreja como dízimo, arrastou minha filha também, que começou a andar quase como se fosse um clone da mãe. Queimou meus livros de ficção cientifica do qual eu colecionava desde a adolescência. 
            Sua tese para o divórcio foi dizer que eu estava com o demônio no corpo.
             Papai Noel em finlandês é “Joulupukki.”.
            - Tem alguma prova que você seja o Messias? – a apresentadora fazia a pergunta com aquele ar ingênuo ensaiado. Claro que o Jesus da televisão tinha uma resposta pré-pronta cheia de curvas. Ele não respondeu nada diretamente, mais evasivo que um político ou um policial corrupto ele soube se desviar de todas as polêmicas. Quando chamaram os pesquisadores sérios da religião cristã, ditos como teólogos, ele soube se safar de alguns questionamentos de maneira bem pobre, mas convincente.
            - Você já fez algum milagre? – pergunta a apresentadora.
            - Posso fazer um agora, aqui no palco – nesta hora me engasguei. Essa eu queria muito ver.
            O Jesus da televisão se levanta,um grupo de quatro meninas muito bonitas, mas com o rosto do qual já fizera muita besteira no passado, retira o manto vermelho que ele carrega sob os ombros. Era um sujeito bem magro e bem alto, cabelos lisos e loiros, muito bem tratados.Se duvidar, mais bem tradados do que os cabelos da minha filha. Seu rosto ossudo realmente parecia ser de outro lugar, Alemanha talvez, e tinha olhos azuis profundos e bonitos, realmente um retrato alemão de Jesus Cristo.
            Papai Noel em alemão é “KrissKringle” ou “Weinachtsman”.
            Uma das garotas com cara de prostituta trás um cálice muito bonito, dourado com ornamento de pedras vermelhas. O Jesus da televisão pede uma garrafa de água mineral com marca mais genérica do que o líder religioso citado anteriormente. Ele faz alguns gestos Coperfildeanos em volta da garrafa e faz uma reza em algum idioma que ele acredite que exista.
             Minha ex-mulher dizia que falava línguas.
            Lentamente ele derrama a água no cálice e o silêncio no estúdio pode ser ouvido. Até mesmo os especialistas se calam. Todos estavam muito atentos ao que poderia acontecer, dali em diante poderíamos receber a grande revelação. O Jesus da televisão olha para a câmera de maneira ensaiada e desafiadora, ele tenta esconder um sorriso maquiavélico o máximo possível, ele tenta forçar seriedade, mas eu convivi com estas pessoas durante muito tempo para saber o que iria acontecer.
             Ele chama a apresentadora, ela se aproxima de uma maneira humilde, a mesma humildade que ela utiliza para menosprezar os seus assistentes. Ele entrega o cálice para a mulher e ela bebe. Seu rosto se contorce de uma maneira engraçada, parecia o Jim Carrey no Máskara.
            - E vinho! – e todos aplaudem o Jesus da televisão de pé. A câmera focaliza o líquido roxo dentro do cálice, os especialistas se entre olham com um ar sarcástico. O circo estava feito.
            O mal estava feito.
            Papai Noel em Frances é “Père Noel.”
            Antes de mais nada, deixa eu explicar como funciona o milagre: No fundo do cálice havia xarope de suco de uva, era uma espécie de fundo falso. Quando você derrama a água no cálice e ele invade este fundo falso, a gravidade se encarrega de misturar as duas partes de forma homogênea, ele faz uma mexidinha ali e outra lá e pronto, você tem vinho e do melhor tipo: sem álcool. Este truque está no segundo DVD do Mr. M, ganhei-o num amigo secreto. Claro que aquela palhaçada toda era só para tomar um pouco mais de audiência, claro que ninguém levaria a sério e todo mundo esqueceria no outro dia. Claro que nada daquilo faria sentido.
            Lembrei-me disto quando, mesmo com o gás lacrimogênio, as pessoas furaram a primeira barreira e começaram a bater na porta da delegacia. Da minha janela eu via uma velhinha de uns setenta anos agredindo um policial do Choque. As pessoas brandiam espadas de papelão com papel alumínio imitando o metal. Gritavam palavras de ordem, palavras de cunho bíblico. Alguns gritavam “libertem Jesus”, pessoas com cartazes, papéis. Alguém joga um coquetel Molotov que incendeia um carro ao se partir. Estávamos entrincheirados, do lado de fora uma massa furiosa,quase como zumbis hollywoodianos prontos para nos atacar, todos gritavam furiosamente.
            - Já é natal?  - pergunto para um dos meus colegas que estava entendendo cada vez menos aquela loucura.
             Eu queria muito ligar para minha família, peguei o pior turno por causa da loucura que estes últimos dias foram. Queria muito falar com minha ex-mulher, com minha filha. Queria muito dizer “feliz natal”, queria muito falar algumas palavras legais, falar coisas das quais não digo há muito tempo. A porcaria do trabalho acabou me soterrando, ainda mais depois dos últimos dias. Desde que me divorciei eu não nego que me distanciei um pouco. Acabamos nos afundando no trabalho para esquecer as mágoas da vida. Isso é um fato. Todo que eu conheço que são viciados no trabalho é porque não possuemum bom ambiente em casa. E eu estava virando turno após turno. Ganhando um dinheiro do qual eu não iria usar.
            Mas lembrei de que não haveria ninguém em casa, hoje teria algum culto de alguma coisa.
            O reforço chegou com carros de bombeiro atirando jatos de água na população enfurecida, eles se deitam no chão e começam alguma reza forte. Começam as nos chamar de satanistas, de romanos. Ainda bem que não xingaram minha mãe. Observo tudo isso da janela. Na televisão uma loucura, todos os repórteres obrigados a perderem o natal estão dando as últimas notícias, se engasgam com o gás lacrimogênio. A cobertura completa da televisão com tudo que se precisa para cobrir. Toda a loucura, o palco está pronto. Parece que tudo fora armado para isto, claro que estou fazendo conjecturas tão insanas neste ponto. Eu queria realmente estar comendo alguma coisa gostosa, um pavê por exemplo.
            - Está feliz com tudo isso? - pergunto ao homem algemado na cadeira. Não pudemos coloca-lo em uma cela para não criar uma baderna maior do que esta. O Jesus da televisão dá um sorriso sarcástico escondido dentro daquela barba. Ele olha para mim com uma cara de piedade pior do que a de um cachorro. Eu lembro como este sorriso me incomoda, é o mesmo sorriso do pastor, aquele sorriso de “venha, sou a salvação”.
            - Não fico feliz com a selvageria meu nobre, mas isso prova que o povo sabe quem eu sou - ele fala cada palavra lenta e calmamente.
            Papai Noel em japonês é “Jizo”
            Aquele programa de televisão causou mais impacto do que podia-se imaginar. Talvez pela falta de fé das pessoas no futuro ou por causa da busca de um ponto de referencia para tudo as pessoas deixam o seu senso crítico de lado e passam a adorar tudo aquilo que convém, uma maneira simples para anestesiar a dor, quase como uma das milhares de drogas que são aprendidas. A experiência religiosa se tornando um novo ópio social, um ópio para as camadas menos desenvolvidas que precisam de algo para se agarrar. Todas elas se abraçam fortemente o mastro do Titanic.
            Ciência, lógica, pensamento cientifico? Tudo é coisa do capeta, dizem.
            Quando menos percebi, havia uma matéria do Jesus da televisão, tinha acabado de montar um templo milionário no centro da cidade, milhões de fiéis vindos de todas as partes do país, todos em adoração esperando um milagre. Obviamente que minha ex-mulher e minha filha também faziam parte, se agarravam a todo tipo de ilusão. Logo o Jesus da televisão tinha seu próprio programa dominical, tinha sua audiência. Suas palestras valiam milhões. Fazia passeata na Paulista, fazia viagens. Havia seguidores deste cara em todas as partes. Engraçado ver todas as outras igrejas e templos que faziam campanhas gigantescas demonstrando a farsa que este cara era. Programas de televisão inteiros mostrando a vida desse sujeito, falando da família dele, seu nome verdadeiro, o que ele era. 
            Operava milagres no seu templo. Minha filha acabou me arrastando uma vez, vi com meus próprios olhos truques de hipnose e truques de puro charlatanismo. O velhinho que ele tirara da cadeira de rodas foi o mesmo que eu prendi tempos atrás por tráfico de drogas e acredite, ele corre muito bem. Cirurgias espirituais, venda de água mística, venda de pano místico. Não sabia ao certo o que aquele templo era de verdade, uma feira livre ou um lugar de culto religioso. Ele se dizia reencarnação do Messias, logo depois dizia que era o próprio e que nunca tinha morrido. Teólogos de plantão teriam um derrame ao ouvir tais coisas. As pessoas o seguiam de maneira cega, tratavam-no como rockstar. Queriam autógrafos, queriam benção tudo se tornou uma loucura maior do que se podia imaginar.
            Acredito que nem ele sabia ao certo à proporção que isso estava tomando. Vendo por outro ponto de vista, acho que tudo, a princípio, não passaria de um golpe, uma pequena bobagem para ganhar um pouco de fama e alguns trocados. Porém com o tamanho e as proporções que tudo começou a tomar, ele mesmo perdeu seu eixo. Dizem que se você conta várias vezes uma mentira, ela acaba se tornando verdade e talvez isto tenha acontecido. Contou tantas vezes a mentira que ele começou realmente achar-se Messias, começou realmente a acreditar no que dizia, que estava criando uma nova religião.
            Neo-Cristianismo, chamou. Seu símbolo era uma cruz com um círculo em volta.
            Mandou imprimir uma nova bíblia contando sua história de vida, era uma biografia boba que se tornou best-seller. Até o Papa falou sobre ele no vaticano. Disse alguma passagem da bíblia sobre falsos profetas. O que a inveja não faz?
            Na Itália eles tem duas maneiras de dizer Papai Noel: pode ser tanto “Belfana” quanto “Babbo Natal”.
            Talvez o ponto onde subiu a cabeça tenha sido um problema maior, talvez sua loucura em dizer ser o filho de Deus, ou de algum deus tenha o levado longe demais. Talvez alguém tenha tentado se aproveitar de sua fama e inventado mentiras a seu respeito e dera certo, talvez alguém tenha tentado extorqui-lo ou não. Nunca saberei realmente o que aconteceu, mas não demorou muito para aparecer na televisão: “Jesus estuprador, vítima diz ter sido violentada em um dos seus cultos”
            Claro que uma declaração de guerra contra alguma nação Islâmica não teria sido tão bombástica quanto.
            A vítima era uma garota com cara de passado conturbado. Parecia ter sido viciada em alguma droga pesada por muito tempo. Seus olhos fundos e seu rosto magro, sua maneira esquálida e confiante de falar. Era claro que a mentira pairava no ar, o Jesus da televisão tinha conseguido um oponente a sua altura, sua Maria Madalena mais que merecida, porém com o apedrejamento inverso. Quem nunca pecou que fale isso no Twitter. Sua história era convincente, sempre mantinha os mesmos detalhes, sempre chorava e engolia seco no final. A repórter abraçava-lhe como uma irmã, pessoas se revoltaram, outras disseram que era mentira.
            Eu não simpatizava nenhum pouco com o Jesus da televisão, mas eu sabia que era uma farsa se chocando com a outra.
            Eu sabia que nada aquilo seria verdade, o cheiro de problema veio longe.
            E começou a guerra da televisão. Anúncios, revistas, entrevistas, pessoas falando. A mídia ardia de uma forma nunca mencionada. Nosso DP foi incumbido de executar o mandado de prisão, e assim o fizemos. Fomos pega-lo no templo com uma população de uma pequena cidade protestando, quebraram um carro de polícia, tivemos que prender mais umas trinta pessoas por baderna. Televisão, mídia. Um inferno.
            Minha filha parou de falar comigo.
            Os jornais sensacionalistas apontavam o dedo, diziam sobre o crime do falso Messias, as pessoas apontavam o dedo, diziam que éramos hereges, que prendemos o filho de Deus. Neguei por várias vezes entrevistas por revistas famosas, tentaram por várias vezes me dar dinheiro para isto, mas eu queria me manter distante, eu sou apenas o narrador de uma história bizarra e não um personagem propriamente dito do mesmo.
            O interrogamos mas nada dizia de concreto. No fundo eu sabia que ele não encostou um dedo na garota, ela estava tentando se aproveitar da fama do Jesus da televisão. Ele começou a acreditar na mentira, ele tinha se deixado levar. Ele realmente acreditava que iria salvar o mundo de nós mesmos. Ora, nem o Jesus de verdade conseguiu, este cara ira conseguir?
            Enquanto o interrogávamos ele olhou para mim, olhou no profundo dos meus olhos e disse meu nome. Observei-o.
            - Você me parece muito incrédulo – nisto ele acertou – sua descrença vai te levar para a miséria. Eu sei que você é um homem sisudo, acredita muito na lei e na ordem, gosta de pensar que tudo gira ao seu redor. Também vejo que é um bom pai de família, deve ter uma filha e um cachorro, acho que é divorciado. Também não gosta muito de frequentar a igreja, estou certo.
            Todos em minha volta arregalam os olhos, todos olham para mim, olham para o Jesus da televisão de maneira assustada. Eu apenas dou um pequeno suspiro.
            - Vocês acreditam neste cara?
            - Mas ele te descreveu por completo – diz um dos meus amigos do futebol. Ele realmente não me conhecia tanto para saber se ele tinha me descrito por completo.
            - O nome disto que ele faz é leitura fria, eu já li sobre isso. Usam palavras genéricas que serviriam para qualquer pessoa e alguns dados mais aprofundados ele deve ter ouvido da minha esposa que é seguidora dele – pego um papel na mesa e escrevo um número enquanto vejo o sorriso do Messias secretamente murchar – pronto. Eu escrevi um número neste papel, você consegue adivinhar qual número é este?
            O rosto do Messias primeiro fica murcho, depois se levanta comum vigor estranho e incompreensível, olha para mim profundamente como qual buscasse a melhor resposta.
            - Não responderei porque os poderes consentidos pelo pai para mim não são para fazer mídia – e assim falou o Jesus da televisão.
            Papai Noel em espanhol é “Papa Noel
            Enquanto a confusão do lado de fora piora eu penso em mim mesmo. Penso em uma profunda solidão, penso nas pessoas que estão neste exato momento se suicidando com os piscas de natal em uma banheira. Enquanto as primeiras pessoas conseguem furar o bloqueio e adentrar na delegacia sendo coagidas por policiais armados com armas de verdade eu penso no que nos tornamos. Acho que não temos culpa de pensar no que chegamos, no nível de maluquice que nossa sociedade acabou criando. Pela adoração por um maluco qualquer que está na televisão nós matamos, nós pilhamos, nos tornamos distante daquilo que nos diferencia entre animais racionais ou irracionais. Pode ser pelo Jesus da televisão como por um time de futebol, por dinheiro, por uma banda de música, por uma ideologia ou partido político. Estamos brigando por coisas tão fúteis e sem sentido. Não sei se o Jesus da televisão se arrependeu por algo que fez, a fé transforma as pessoas em seresirracionais que andam num caminho sem volta, não se arrependem por acreditarem em uma salvação.
            Pensei em todos que estão dizendo “feliz natal”.
            Com o impasse gerado, os manifestantes querendo entrar e os policiais ameaçando e dando debilmente tiros para cima. Vejo algumas pessoas ameaçarem a tocar fogo no próprio corpo pelo Jesus da televisão,vejo pessoas sendo machucadas pelas balas de borracha, gás lacrimogênio sufocando os pobres repórteres, e até mesmo nós policiais, sitiados nesta situação impossível. Olho para o Jesus da televisão e digo:
            - Você não vai fazer nada!? – ele não responde, ele não fará nada, ele gosta da situação, gosta que briguei por ele. Ele acredita realmente que é um Messias e agora é tarde. Ele está de braços abertos para aquele povo que perdeu sua própria racionalidade. O Messias é uma piada, é uma anedota a fé burra que não busca tentar um mínimo de lógica. Ele sabe que é uma piada. Uma piada contada várias vezes também vira verdade.
            Eu já estava em casa quando falaram que morreram doze pessoas na manifestação de natal contra a prisão do homem que se dizia Jesus.
            Ele foi sentenciado pelo abuso da menina, mas eu não acreditei mesmo depois da sentença. Sim, ele está preso.
            Está escrevendo um livro da sua vida na prisão.
            Já tem um estúdio de cinema querendo transformar sua vida em um filme.
            A prisão onde ele está virou um lugar de peregrinação. Hoje está competindo com o hotel onde apareceu uma mancha de mofo com a cara da Maria.
            Dizem que ele já curou o câncer, a AIDS, que já ressuscitou umas três pessoas e até a homossexualidade já curou, e eu nem sabia que este último era doença.
            Seu CD de músicas abençoadas já é campeão de vendas. Será grande febre no próximo natal.
            Papai Noel em inglês é “Santa Claus”
            Dizem que foi uma invenção da Coca-Cola mas ai eu não posso afirmar nada. 

sábado, 17 de dezembro de 2016

O lado selvagem da vida



I

            Sujos de graxa, cantando como se não houvesse amanhã.
            Sujos, mente poluída.
            Sujos, mente poluída.
            Eram assim que os garotos andavam nas ruas no fim do ano de 2016
            Eram assim que as traças corroíam as roupas novas do fim de ano.
        Quantas gramas de ferrugem é necessário para dizer que algo está realmente velho, quanto precisamos interferir na vida improvável. Nas improbabilidades que se mostram um tanto quanto engraçadas, pragmáticas, sofríveis. Quanto de Ritalina precisamos para que possamos nos concentrar na pequena merda que toda esta grande bosta se tornará.
            Crianças brincando em hidrantes quebrados.
            Carros arrancando às três da manhã.
            Não me deixam dormir, os remédios não me deixam dormir.       
            E as garotas coloridas se afogam no próprio vômito.         
            E os garotos coloridos se beijam e fazem todos ter caras de nojo.
            Ahh como eu queria ser um gênio para escrever uma Ode.
            Notícias tristes de fim de ano.
            Mas o Papai Noel está lá, murcho com uma cara de tristeza, ouvindo milhares e milhares de crianças que ele tem vontade de matar. O Papai Noel usa vermelho para disfarçar o sangue da roupa, o sangue daquelas crianças birrentas que gritam e choram pedindo brinquedos que custariam o salário do mês. Elas querem as bonecas e os bonecos mais caros, elas querem tablets e smartphones de ultima geração para jogarem Candy Crush. Para queimarem suas retinas. Para assistir pornografia às três horas da manha.
              Eita, é o lado selvagem da vida.
              Eita, é o lado selvagem da vida.
            Na saída da faculdade uma mendiga me aborda, com olhos mareadas e voz sibilante, ela não pede esmola, ela pede respeito, ela me diz que não é uma vagabunda, que não é uma ladra, ela simplesmente quer ter dignidade mas o mundo, o mundo é selvagem e não deu dignidade para aquela pobre moça, suja e pobre, suja e nojenta (no lado bom da palavra), suja e suja, suja e com diversos filhos, suja e velha, suja e inútil (no lado bom da palavra). Aquela pobre alma suplicava por respeito gritando com todos que não era uma pessoa má, apenas escolhera alguns caminhos errados. Ela suplicava por perdão a um deus egípcio.
            Dei um real e feliz natal.
            Ela sorriu com seus dentes tortos. Ela sorriu com sua mente torta. Ela tinha prometido para si mesma que nunca mais usaria daquela pedra, ela tinha prometido para si mesma que iria se reformar, que iria se concentrar, que iria estudar e sairia para sempre daquela vida, ela tinha prometido para si mesma que tudo seria diferente, que ela seria uma garota colorida que sairia cantando nos pontos de ônibus “thururu thururu”. Ela sairia da prostituição, dos pequenos crimes, da vida marginal, ela iria concertar os dentes, ela iria sorrir de novo, ela se limparia da graxa e da vida nas calçadas, ela comeria uma refeição descente, ela deixaria de usar A pedra, ela deixaria de usar A pedra… mas usaria só mais uma vez para se despedir.
            O lado selvagem da vida.
            O lado selvagem da vida.
            Está longe dos conflitos dos super-heróis ou do império de Star Wars.
            Está longe das princesas da Disney.
            Está longe dos problemas da Dora Aventureira.
            Está na moeda de um real e sua sujeira.
            Está nos supermercados da América as dez da noite.
            O ônibus lotado.
            O pernil de natal.
            O lado selvagem da vida.
           

                                               II

            Não tem jeito de escapar.
            No começo de 2013 um jovem tentou escapar do lado selvagem da vida. Ele escolheu e escolheu e acabou na lama como tooooooodo muuuuuuundo. Triste jovem, triste humanidade. Ele se matou se matou de uma maneira miserável, se jogou daquele quarto andar tão brilhante e bonito. Hoje está nos portões de Valhalla, sofrendo a batalha eterna. Simplesmente se jogara para os braços de uma vida que não seria dele, simplesmente se jogara. No começo de 2014 milhares de jovens se jogaram, esta era a moda nacional. O lado selvagem da vida tornara-se moda, porém ninguém aguentava de fato o que era isso.
            Os Evangélicos disseram que eles iriam para o inferno.
            Os Católicos estavam preocupados com as crianças.
            E tudo converge.                   
            Os tempos foram mais difíceis, meu avô dissera isso na época das grandes crises nacionais, ou quando militares imbecis tomaram conta do Brasil. Tínhamos tanta fome e tanta sede que não nos faltava palavras. A falta mexe na criatividade, dizia meu avô. A falta mexe na fome, mexe na sede, mexe com as garotas. O preto e branco sempre será um ponto de pragmatismo.
            Existem dicionários de palavras bonitas na internet que os poetas de bosta utilizam para florearem os seus poemas.
            Existem tantas palavras de ódio.
            Milhões de sílabas postas juntas em um torno mecânico para tentarem dizer algo. Meu avô lia o jornal, morreu lendo o jornal. A última notícia do jornal que o vitimou era uma notícia que dizia que o Brasil teria jeito, que o mundo teria jeito, que todos viveríamos felizes. Tal imagem era imensamente impossível de ser visualizada, morreu então.
            Existem tantas palavras de ódio.
            O lado selvagem da vida está convergindo, está atrás de atrações para seu circo dos horrores.
            O lado selvagem da vida não exige uma explicação. Ele simplesmente acontece e está conosco em todos os momentos gloriosos da nossa vida. Está tentando explicar algo que se torna até distope, até torpe, até imbecil. Está nas grandes tragédias e naa mães chorando no programa da Fátima Bernardes. Está no café da manhã e nas pessoas que não conseguem almoçar ao meio-dia, está no Demônio do meio-dia.
            O lado selvagem da vida não exige uma explanação. Ele simplesmente existe, ele simplesmente está. Três da manhã e aquele estampido de morte possui um grande significado.


                        III

            Levante.
            Escolha o dia, o sinal do seu dia que te levará para a eternidade. A primeira coisa que você vê ao amanhecer é o seu amor ao seu lado. Aquele seu quarto rosa que ainda exala um ar infantil para uma mulher já com certa idade, treme na base do estomago com a fome que lhe trás memórias de quando sua mãe preparava todas as refeições. Tudo está quebrado e todos estão dançando lá fora. Está amanhecendo, você não se lembra da última vez que levantou as quatro horas da manhã. Sempre haverá uma madrugada nos meus textos, não reclame. Você não se lembra de nada, mas se lembra de que fora bom, que fora divertido, que fora mágico, que fora algébrico. Todos os axiomas da matemática sorriram para você naquela noite. Fantasmas de antigos deuses estavam nas garrafas de bebidas que você bebeu. Vodka, Úisque, dançar na mesa, Cerveja, vomitar e vomitar e vomitar e vomitar. Algumas drogas fazem parte de ser jovem em 2016.
            Levante. A Netflix pergunta se você ainda quer continuar assistindo.
            Levante. O lado selvagem da vida chegou pelo correio.
            Levante. O despertador do seu celular não vai tocar hoje.
            Levante. Os índios assassinos estão chegando.
            Escolha o dia, o sinal do seu dia que levará para a eternidade. Os carros estarão nos estacionamentos por toda a madrugada, um ou outro alarme tocará e destruirá os sonhos daqueles que dormem tão tranquilamente. Tudo pesa uma tonelada e meia quando se está de ressaca. Os óculos escuros e o gosto de merda na boca.
            Sangro todas as vezes que escovo os meus dentes.
            Nuvens de ferro no céu.
            Uma dança selvagem acontece todas as manhãs e sempre às seis horas da noite. Milhares de buzinas escondem o lado selvagem da vida.
            Mas o lado selvagem da vida está lá.
            Ele irá te matar na noite de natal.
            Ele irá te matar na virada do ano.
            O lado selvagem da vida te observa
            Na calada da noite, pela sua Webcam, te vê trocar de roupa, arrancar o próprio rosto e guardar em um cabide, te vê pelo buraco da fechadura digital, deitada na cama com seu amor pela madrugada, naquele infantil quarto rosa que você julga ser o lugar mais seguro do mundo. Era feriado era feriado. O lado selvagem da vida sorri e sorri.
            O lado selvagem da vida começa de madrugada, com mendigas chorando e usando pedra.
            O lado selvagem da vida começa com garotas bêbadas no meio fio.
            O lado selvagem da vida começa com o homicídio na televisão.
            O lado selvagem da vida está nos chats da Uol.
            Está no programa do Faustão.
            Está no tédio e na morte.
            O lado selvagem da vida te consumirá no sofá de domingo.
            Na estatua da liberdade.
            No atentado terrorista.
            Na queda do avião.
            No poema do blog.
            O lado selvagem da vida está no estupro, no assassinato, na libido dos pedófilos, nos corruptos, sádicos sacanas. Está na verdade nua e crua, no tráfico de drogas, nos presídios e nas ruas, esquinas, becos, bairros, comunidades, favelas, buracos, inferninhos, bares, bebidas, drogas, loucuras, três da manhã, avenidas movimentadas, rachas, morte, sangue, jovens, aborto, vômito, ressaca, talkshows, off-line, snapchat.
            Ele olha para você enquanto dorme.
            O lado selvagem da vida

            Não dorme.

domingo, 20 de novembro de 2016

O INÚTIL


As crianças foram as primeiras a chegar.
            Aquele corpo jazia inutilmente ao chão, algumas velas foram acesas e uma fino lençol branco posto em cima do morto em respeito ao defunto, destruindo assim toda a cena do crime. Um apinhado de pessoas logo circularam, como se fosse um grande evento e alguém fosse distribuir balinhas. Era uma mudança drástica de rotina para aquelas humildes pessoas que passarão a vida a assistir televisão e brigar com o comentarista do futebol. Aquele corpo, morto e inerte, não mais o faria. Toda aquela multidão em volta do corpo, quase como se festejando, não a morte do pobre diabo, e sim o fato da rotina ter sido desvirtuada por um fato, um evento que seria marcado na débil memória de todos os ali presentes. Tudo seria muito comentado durante as semanas que estariam por vir, analistas da tragédia humana trariam deduções tão Sherlockianas que nem o próprio Sir. Arthur Conan Doyle pensaria. Seria o “Estudo em Cinza” referenciando o livro deste consagrado autor misturada a coloração o asfalto. Também seria um show para a mídia. Chegaram antes que a polícia, nos carros identificados com o nome dos canais. Lindas repórteres saltaram dos bancos da frente enquanto os câmeras gordinhos com anos de guerra segurando aquele trambolho de uns 13 quilos por cima.
Aquele senhor gordinho, casado, câmera, ou cinegrafista, de número no cadastro de pessoa física tal e identidade tal, com endereço eletrônico (vulgo e-mail) tal, domiciliado em um casebre alugado que seu parco dinheiro pode alugar, donde reclama com a esposa sobre as dores do ombro e sobre as vontades das repórteres patricinhas que desfilam com suas vontades e vaidades, achando-se as Louis Lanes da vida, porém indo cobrir eventos e feirinhas de lingeries e mortes de zés-ninguém.
Eram treze quilos nos ombros.
Ela falavam com uma maneira bonita, maquiagem muito bem feita. As mães devem sentir um orgulho fantástico em mostrar para as amigas mais um homicídio que a filhinha que fez faculdade com financiamento estudantil está cobrindo.
Acho que o certo é cinegrafista.
O nome do morto não importa.
Porém, sabe-se que um dia antes ele estava bebendo num bar próximo a sua casa. Tinha sido note de jogo, um jogo desimportante de times falidos daqui da capital. Vinte quatro pessoas nas arquibancadas, dezesseis de um time e o resto dou outro. Eles gritavam e os grilos, e os carros, e a desimportância falava sempre mais alto. Um dos times conseguiu a proeza de fazer um gol. O atacante alcoólatra vibrou como se fosse o final do campeonato mundial. Ele mesmo não sabia se mundial era escrito com “L” ou com “U”. Por, fim, em uma gozação cotidiana de bar, o mal aconteceu. Foram cinco ou seis facadas, ninguém conseguiu contar ao certo. Foram facadas certeiras, na barriga, que transformaram a branca camisa de partido político em vermelha, não fazendo alusão a nenhum partido com esta cor. O homem saiu do bar cambaleando, sem pagar a conta e conseguiu andar até por muito tempo, antes de desvanecer ao solo, morto, esquecido, inerte.
            Mal sabia ele que morrer seria a coisa mais importante que fez na vida.
            A polícia chegou com uma hora e meia de atraso. Eram três carros da polícia civil, dois da polícia militar, uma ambulância (?) e um camburão do I.M.L. Fiquei esperando pelo tanque de guerra, pela marinha e pelos caças franceses da força aérea, porém acho que eles nunca chegaram. Fizeram perguntas sobre o que, quem, como, aonde, que horas, e qual era a senha do Wi-Fi. Os peritos do I.M.L mais sujavam a cena do crime do que analisavam, eles tomavam como evidência as bitucas de cigarro que eles mesmos fumavam. Não muito longe dali, um capitão, tenente, sargento, sei lá, da policia, falava termos difíceis como “elucubração” e “a priori” para a repórter. Creio que devam ter comprado algum manual de termos inúteis em latim ou coisa parecida. Normalmente eram policiais gordos, com coletes à prova de balas parecendo babydolls, revolveres malemolentes presos à cintura e pizzas de suor debaixo dos braços. Andavam de um lado para o outro se arrastando e reclamando do calor. A patente mais alta sempre ficava no carro gozando do ar-condicionado.
            O pobre homem é jogado em uma caixão de metal sujo, e esta caixa de metal é empurrada para dentro do camburão. Sua última carona no Uber fúnebre. Desta vez não havia nenhuma recém viúva dando escândalos e beijando o crânio inerte do presunto. Desta vez não tivemos tantas lágrimas. Creio eu que até alguns fogos de artifício soltaram, mas não por ódio ao que morreu, mas sim pelo evento, pela quebra de rotina, pela multidão. Por terem visto gente dos bairros nobres pisando naquele asfalto carcomido, que é apenas lembrado de quatro em quatro anos. A favela ou comunidade terá sua visibilidade nos jornais. As pessoas almoçarão vendo o bairro da periferia e seu morto famoso.
            Pobre do diabo que morreu. Porém fizera algo de notável na vida. Tomara algumas facadas e fora cambaleante morrer em um lugar sereno. Poderiam até fazer estátuas em homenagem a este inútil, poderiam visita-lo no cemitério, deixando flores, deixando mensagens. Todos os jornais do Brasil noticiariam que alguém levou um tanto de facadas, não disse “et tu brute” e caiu de cara no chão, manchando o asfalto velho do prefeito velho da cidade velha do bairro velho. A CNN noticiaria sua morte com muito pesar, a Al Jazira noticiaria seu falecimento com muito pesar. O presidente dos Estados Unidos da América faria um minuto e silêncio em sua homenagem, durante a abertura do Super Bowl. Tudo em memória da morte daquele pobre diabo que foi defender seu inútil time por ter perdido de maneira deprimente para outro inútil time de um esporte tão sem graça quanto o futebol.
            Porém todos tem memória curta.
            Falariam sobre o homicídio durante algum tempo.
            Falariam do próximo homicídio: Criança que levou quatro tiros na cara por dívida de droga.
            Falariam do estupro da menina de quinze anos, efetuado pelo seu próprio padrasto na cama da mãe.
            Falariam do roubo de carro nos bairros próximos, e como os bandidos atropelaram uma família inteira que voltava da praia.
            Falariam do covarde caso do vendedor de DVD’s piratas que fora levado aos arrastes de casa por ainda vende este tipo de mídia, mesmo com a invenção da Netflix.
            O povo tem memória curta.
            E sobre o morto? Tão inútil quanto antes.

            

sábado, 29 de outubro de 2016

UMA TARDE


            Talvez o silêncio que nunca dantes tivéssemos ouvido, tornaria tão breve o nosso sossego. Disse a ti o quão silencioso seriam os dias deitado sobre o seu peito, ouvindo como único e primoroso ruído o saltitar do seu coração em puro tédio de uma tarde qualquer.
            Dissestes para ti como as tardes eram tão calmas e serenas, tais quais as tardes perdidas de dias esquecidos em passados distantes. Tu sorrias, tu sorrias, tu sorrias, era doce seu sorriso ainda cheio de sono. Estávamos juntos. O lauto de nossas alegrias, a união oculosa de nossos lábios, serenos e perenes, divagantes.
            Talvez o silêncio, hora quebrado por um carro, hora quebrado por vozes inquietas, fosse algo tão divino quanto as abissais divindades do passado. A eternidade que se mostra nestas tardes alaranjadas, cheias de mistério e magia. Estamos juntos, colados & unidos em nossa atividade silenciosa de contemplação. Somos tranquilos, calmos, serenos, únicos. Possuidores de um poder uno e calmo.
            Uma gritaria. Crianças na rua.
            Não tínhamos internet para nos atrapalhar.
            Uma suave música, algo tão passageiro como a primavera. O eflúvio de flores dantes nunca notadas, prostrara no ambiente por uma fração mínima de segundo. Tu estavas com olhos fechados, imaginado dantes sonhos nunca sonhados. Me diria depois que sonhou com nossa possível filha(o).
            Música alta, quase uma onda gravitacional.
            Logo o silêncio voltou a reinar, afago (sim, mudo o verbo), afago os seus cabelos, tu me diz quanto é bom. Estou quente, você está quente, é um dia quente, os ventiladores estão quebrados. A televisão está quebrada, acabou a energia em toda a cidade e os chatos estão dormindo. Você sorriu mais uma vez, te conto algo engraçado sobre o que aconteceu ontem. Você sorrio
            - Eu te amo.
            - Eu te amo.
            Você sorriu.
            Você sorriu.
            Lusco-fusco.
            Existe uma dificuldade verdadeira em enxergar a estrada nesta hora do dia. Da tarde. Da noite. Longe, alguns perdidos tocam fogo em um conjunto de mato seco. A fina fumaça e o fino cheiro de queimar sobre pelo bairro, alastrando-se pelo tédio de uma tarde primaveiral, Estamos levemente suados, eternamente sozinhos. Ainda não sonhamos esta noite, pois passaremos grande parte dela acordados.
            Fome.
            A letargia da preguiça deixará a fome tomar um pouco mais antes de ficar mais séria. Ela veste-se apenas por se vestir. O chão está frio, os pés estão descalços, Desistimos, tornamos ao tédio. Não há energia na cidade, as estrelas brilharão como nunca o fizeram. Por sorte, baixei David Bowie para toda a noite.
            Anoitece e o escuro toma conta. Algumas velas desnecessárias estão acessas apenas para não acrescentar o medo da noite ao medo do escuro. O cheiro de uma praia distante nos passa pelas narinas.
            - Vamos à praia próximo domingo? – pergunto, como a interrogação assim sinaliza.
            - Vamos à praia próximo domingo. – ela afirma, como o ponto assim sinaliza.
            E o futuro assim está traçado.
            E o escuro caí.
            E dormiremos de maneira una.

            

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

DOS SANTOS


            Eleonor B. Roosevelt não era americana, muito menos rica. Nascera numa puta que o pariu qualquer de um interior bem imbecil. Tinha sido um milagre o Carinha do Cartório ter escrito seu nome de uma maneira correta. Tal ideia imbecil tinha sido de seu pai, Diplomata dos Santos, do qual perduraria uma geração de nomes bizarros. A mãe de Eleonor chamava-se vulgarmente de Maria, mas ela não fará nada de importante na história.
            O Carinha do Cartório teve dificuldade, a princípio, em escrever o nome de Eleonor B. Roosevelt. O mesmo perguntou como era para ser escrito e o respeitadíssimo Sr. Diplomata disse que não sabia, mas tinha que estar certo. Sentindo-se desconcertado, pois o Carinha do Cartório era perfeccionista e mantinha a sua coleção de uma única caneta sempre geometricamente alinhada no balcão e suas roupas combinando com seu estado de espírito, o pequeno homem do cartório, o “Carinha”, assim vulgarmente chamado por este escritor, tentou, fugindo aos seus princípios perfeccionistas, escrever o nome Eleonor B. Roosevelt.
            - O “B” é abreviação do que? – perguntou o Carinha do Cartório.
            - O que é abreviação? – indagou o respeitadíssimo Sr. Diplomata.
            - É quando você diminui uma palavra.
            - Mas eu não fiz nenhuma palavra. Eu fiz um nome, “B” é “B” e pronto.
            - Então o nome dela vai ter um “B.” no meio, sem nenhuma explicação.
            - Isso mesmo, é, como você disse, “abravado”.
            - Abreviado?  - corrigiu tacitamente o Carinha do Cartório.
            - Foi isso que eu quis dizer.
            O Carinha do Cartório pediu os documentos do Sr. Diplomata e da senhora sua esposa, que não terá importância nesta história, e a certidão de casamento. Logo espantou-se pois notou que o nome completo do Sr. Diplomata era “Diplomata dos Santos”, sendo assim, não possuindo nenhum Roosevelt no ultimo nome.
            -Sr. Diplomata - disse respeitosamente o Carinha do Cartório -  será preciso colocar “Dos Santos” como o último nome da sua filha.
            - Eu não quero –Sr. Diplomata acendeu um cigarro.
            - Não é se o senhor quer, é lei.
            - Me mostra esta lei.
            - Afê Maria Véi – Maria diz em um misto de raiva incongruente e impaciência predestinada - põe logo o nome na menina que eu tenho mais o que fazer!
            Eleonor B. Roosevelt seria a caçula durante pouquíssimo tempo, pois seus país já tinham encomendado a cegonha uma nova criança, aumentando a cria de oito para nove. Todos os outros filhos tinham nomes absurdos, e sempre era uma pequena disputa por o ultraje do nome “ Dos Santos” finalizando aquele show de horror. O respeitadíssimo Sr. Diplomata nunca fora muito religioso, e Dos Santos, o incomodava um bocado. Em suas próprias palavras, o mesmo dizia: “Não fui, nunca serei e nunca sererei um santo para ser Dos Santos.
            Mas a lei é lei e todos possuíam dos Santos. Curiosamente até sua mulher, do qual o mesmo exigiu que ela assim o fizesse, sendo Maria dos Santos, mas ela não tem importância na história.
            Depois de exatas três horas de discussão e pesquisa em um antigo código civil, deveras desatualizado, pois era antecessor a mudança de 2002, eles entraram em um consenso de, assim, chamar a garota de Eleonor B. Roosevelt dos Santos.
            - Ela será dos Santos, tipo o Silvio Santos – Brincou o Carinha do Cartório.
            - Então tira o “Dos Santos” porque eu não quero que a confundam com o Silvio Santos – Sr. Diplomata era uma aula viva de lógica, muito puxado do seu pai, Trioparadadura da Silva dos Santos, do qual era teimoso igual um jumento com diarreia, e assim como seu avô Pe-pedro Ba-batísta dos Santos, batizado pelo seu pai gago e por um auxiliar de cartório engraçadinho.
            - Marido, Chega desta putaria, que eu tenho mais o que fazê! – em uma onda de grito odioso e depois de um falar doce e calmo – Sr. do cartório, põe do jeito que o sinhô achar melhor, porque lá em casa eu chamo todo mundo de peste, então não faz diferença!
             E assim, Maria encerrou o assunto e nasce civilmente Eleonor B. Roosevelt dos Santos.

            Alguns meses depois, a história se repetiria com o novo filho do casal: Abreviação Silvio dos Santos. 

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Bom Humor



                Tenho atualizado pouco porque tenho muito mais o que fazer. Estou digitando em um teclado do qual a barra de espaço não funciona muito bem e estou ouvindo The Doors.

Claro que com álcool e com meus olhos parando de doer tudo ficaria mais fácil. Mas se eu quisesse realmente facilidade eu mascava algodão. Também gostaria de saber porque o imbecil do Querty não morreu antes de inventar esta maneira de dispor as teclas. É completamente inútil, lento, mórbido! Eu sei que é uma maneira de fazer as pessoas datilografarem (eis um verbo em desuso) mais devagar. Saco!

Jim Morrison Grita.

A beleza da vida é dividia em pequenas gotas de compaixão e vingança. Você pode sair de casa e chutar o gato da vizinha, ou então, simplesmente agir como se não fosse com você. Claro que existem aquelas canalhices obvias como ir sentado em locais “proibidos” no ônibus. E aquelas mais veladas como fingir que vai votar em um candidato só para ganhar um dinheirinho sujo e extra, porém nenhuma destas “belezas” de fato me atrai.

Dai o imbecil do meu lado diz que o candidato dele é melhor e o time dele perdeu porque não concorda com as regras. Tento ignorar-lo de pronto, porém, já notara como alguns imbecis tem o poder divino de entrar na sua mente como uma broca e fazer seus pensamentos focarem no que eles falam? Eu e meu foco adverso em conversas inúteis. Aprendi no último minuto quantos jogadores medíocres conseguem errar um pênalti.

Ah Querty, eu partiria o seu pescoço.


Pois bem, daqui pra frente, próximas semanas, o Míope Psicopata estará de bom humor.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Bandeiras


I

            Agitam bandeiras. São de todas as cores. São muito bonitas.
            Agitam suas ideias. São ideias de muitas cores. São ideias bonitas.
            Mas eu vejo além, eu vou além de mera bandeiras, eu vou além de meros sorrisos e frases de protesto. Eu vou além, eu entro em sua consciência, eu entro no seu âmago, eu sou o Sr. O único ser todo poderoso que tem poderes o bastante para te fazer chorar.
            Agitam seus sentimentos. São sentimento de muitas cores. São sentimentos bonitos.
            Agitam seus medos. São medos de uma única cor. Uma cor indescritível.
            Eu sou o Sr. Mas tenho esta ansiedade, este medo, esta insegurança. Sei que posso fazer algo do tamanho do mundo, porém o poderoso Júpiter pode nos engolir & sorrir, sem versos e sem poesia. São paralelepípedos nas calçadas com nosso pés machucados. São medos, temores, coisas afins. Estamos distantes, estamos em outras galáxias tentando capturar o verdadeiro amor, perdido em milhões de estrelas. O mundo que nos perdoe, porém a destruição é necessária.
            Agitem suas cores.
            Agitem seus partidos.
            Existe uma violência escondida nas esquinas. Coisas que não consegue se calcular. Nenhum axioma matemático tem este poder sucinto de prever os acontecimentos. Desapareceremos em violentos rios, nossos corpos serão o nutriente de uma terra até tão castigada. Nossas crianças trarão o trigo & joio em suas machucadas mãos. Nós, os pais, estaremos mortos e enterrados há tempos.
            Agitam as hipocrisias, só possuem cor-de-ódio, cor-de-raiva.
            Mas eu entendo estes agitadores.  Vivemos em um estranho mundo, onde tais coisas banais se tornaram hecatombes nucleares. Tais banalidades, são apenas um quimera de tantas incertezas. A violência está lá fora junto à nossas crianças.
            Tu não se lembras? Tu foste criança.
            Estamos duros, calejados, entorpecidos.
            Estamos parados, tristes.
            Tristes.

II

            Os ódios se misturaram.
            Existiam muitas frentes nesta guerra sem sentido.
            Os ódios se misturaram.
            Ninguém mais escutava rádio nas calçadas.
            Lembras que um dia, quando eu era bem pequeno, tu mostrara que o céu neste ponto do mundo possuía nuvens lidas e vermelhas. Era uma noite quente de verão e estávamos na calçada, observávamos o céu do mesmo jeito que fazíamos em casa, porém, lá era mais frio, as nuvens eram azuis-escuros, e sempre um avião manchava a paisagem. Porém aqui, na sua terra natal, o céu possuía lindas nuvens vermelhas.
            Hoje tu não estas mais aqui, as nuvens continuam vermelhas, porém ninguém mais as observa (nem mesmo eu)
            Algo morreu em mim de uns tempo pra cá, mas eu não sou o foco.
            Existe coisa mais importante além daquela porta.
            GUERRA
            Na rua garotos com seus dezessete, dezoito anos, estão bêbados, sangrando, mortos. Agitam bandeiras, um dia foram coloridas, agora todas tingida de um vermelho. Era o sangue dos vivos que logo estarão mortos.
            Brigam por causas dos quais nem sabem ao certo o que é. Digladiam-se com seus irmãos cósmicos pela única coisa em comum, o ódio que um sente pelo outro. Não se importam se matam, se morrem, se castram, se estupram. Estão morrendo aos montes, toda uma geração está perdida em ideias dos séculos passados. Estamos voltando para uma era gélida e fria, onde o temor a um “deus” – sim, com letra minúscula, pois é o que ele é, minúsculo – tomou conta da nossa razão. Onde a ciência é vista como uma heresia, onde mataremos, mataremos, mataremos. Guerra, ódio, inveja. Saudaremos velhos açougueiros da humanidade, como aqueles generais, risonhos em suas cadeiras de crânios.
            Ninguém sabe ao certo porque lutam.
            Porém tem alguém controlando tais marionetes.
            Porém tem uma criança abandonada chorando.
            Porém tem alguns pais procurando o corpo do seu filho entre as pilhas de mortos.
            Por qual motivo?
            Por qual motivo?
            Se existe alguma entidade superior, será que goza em saber que aqui em baixo as leis são diferentes, que aqui em baixo as pessoas sofrem pela ignorância de seus semelhantes? Se somos criaturas, somos apenas joguete de um festim diabólico do qual não temos o controle? Somos apenas peças descartáveis de um tabuleiro inverso, invertido, escuro.
            Questiono.
            Não lutarei esta guerra.
            Matem-me por insubordinação, mas minha revolução é interna, não externa.
            Posso sufocar-me pela minha ansiedade & depressão, mas não me tornarei esta criatura abissal, mesquinha e enfadonha que todos se tornaram.
            Não me jogarei aos braços diáfanos destes ignóbeis.
            Não me tornarei mais.
            Porém, se eu me tornar um, serei Uno.

III

            Atravessai o monstro interior.
            Sois binário, perante a este horror.
            Atravessai o monstro interior.
            Não haverá então outra maldita cor.
            Jurai que não sois ator.
            Juro que verei o sol se por.
            Atravessai o monstro interior.
            Saudarei a imagem do Avô.  
            Nuvens vermelhas, seja aonde for.
            O mundo é meu mentor.
            As escolhas, um vetor.
            Sinto do inferno o calor
            Não dou crédito ao diabo, nem valor.
            Também não entregarei o verdadeiro amor.
            Pois, sabes qual o sabor.
            Atravessai o monstro interior.
            ATRAVESSAI O MONSTRO INTERIOR
            Mostrai do purgatório o ardor.
            Pungente no peito tal dor.
            De madrugada, o momento mais assustador.
            Lá fora, gritam com o maior clamor.
            Atravessai o monstro interior!
            Atravessai o monstro interior!
            Atravessai o monstro interior!
            Ouço os passos do comendador.
            Condecorado pelo ódio e favor.
            Ouço ele chegando no fim do corredor.
            Suas vestes de paixões, incolor.
            Ninguém sabe, tal monstro, grande contraventor.
            Sua felicidade vai decompor.
            Da guerra é o compositor.
            Fará soltar o monstro interior.
            Conseguirá capturar o delator.
            Sem julgamentos, será o executor.
            Que crucificara o escritor.
            Que em meio de versos, tentou expor.
            O monstro interior.
           
           
IV

            Era negro o que sobrou de toda a batalha.    
            Entre mortos & perdidos, nenhuma ideologia sobrou.
            Das bandeiras, só sobraram as brancas, imagem de toda a dor e perdição. Ninguém mais soube quem era o quê.
            Ninguém se conhecia, todos cegos pelos próprios ódios, agora viviam um puro ensaio. Impotentes perante o próprio poder. Reis morreram, líderes caíram, governos quebraram, jovens amadureceram. Eles serão os velhos daqui há cinquenta anos e contaram a história de ódio que viveram.
            Muitas crianças perdidas pelas ossadas & cadáveres.
            Essas crianças seriam os próximos Ansiosos & depressivos, sem uma ideia do futuro, sem uma ideia do que fazer.
            Talvez não tardassem muito a morrer.
            Porém os dias foram se sobrepujando.
            Não haveria mais controle, o que foi se foi. As nuvens continuariam vermelhas como um dia foram apresentadas a mim. A noite ainda seria fria e o meio dia ainda seria quente. Ainda haveria comida, apesar de escassa, ainda haveria água, apesar de suja, ainda haveria sorrisos, apesar das marcas de lágrimas.
            Meus amigos estariam mortos.
            Meus filhos cultivariam a terra.
            Meus filhos cuidariam da dor do seu velho pai.
            Cuidariam de sua velha mãe depois que eu partisse.
            Cuidariam da terra, depois seus pais se forem.
            Nos enterraria em terras férteis de cinzas daqueles que morreram no passado.
            Nossos amigos & conhecidos.
            As pessoas que um dia conhecemos brevemente nos ônibus.
            As histórias que nunca virarão livros.
            Colegas do passado.
            Familiares.
            Cães.
            Nós.
            Só.
           
            A última pá de terra e a inscrição na lápide.
            Muitos não tiveram uma lápide (este é o mal da guerra).
            Muitos não tiveram enterros dignos (este é o mal da guerra)
            Muitos não viram o pôr do sol pela última vez (este é o mal da guerra)
            Não haverá rosas em suas camas.
            Não haverá uma última canção.
            O império de sujeira desabou.
            Na cabeça dos limpos.
            A última pá de sujeira.
            E tudo fluiu.
           
            Não haverá culpados num futuro distante. Apenas boas histórias, de um passado glorioso. Ainda nos reuniremos em volta da fogueira para queimar velhas mágoas de coisas que nem de fato aconteceram. Ainda nos tornaremos austeros, porém talvez não nesta vida.
            Pequenos cavalos selvagens ainda correram por nosso pasto.         
            Num futuro distante, todos estaremos felizes, mesmo diferentes, mesmo iguais. Não haverá tantas guerras, e os mortos estarão confortado em seu estado. Nossos filhos viverão em uma época muito boa e muito fértil. Terão chuva de meteoros fazendo o céu brilha numa das noites mais inesquecíveis.
            Nossa pequena história do mundo não estará finalizada se não semearmos a terra com nossos descendentes.
            Nossa trágica história do mundo não teria sido única sem o sangue de pessoas inocentes.
            Nossa velha história do mundo não teria sido o que foi sem tantas curvas e vertentes.
            Muito se passou pelo que se disse nos últimos anos. As vezes até mais do que poderia ter se dito. Vida & Morte, tanta coisa, tantos dias diferentes, escuros, sem um motivo aparente para dar um sorriso.
            Logo as bandeiras voltarão a se agitar, todas de muitas cores, todas muito bonitas.
            Logo estaremos em uma rotina, em um dia a dia, em nossos computadores, em nossa tecnologia.
            Logo estaremos tão vazios quanto antes, mais é cíclico.
            Tudo converge.
            No balançar de tais bandeiras, no balançar de tais sorrisos.
            Seremos velhos, no balançar das cadeiras.
            Nossos dias serão pequenos. Imperceptíveis.
            Nosso dias não farão diferença.

            E no fim do dia, no último dia, antes do fechar de olhos, veremos as cores mais bonitas.