quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Inércia

Despertou junto ao sol naquela pitoresca manhã. Seu pequeno quarto escuro do qual uma mínima janela bem ao topo da parede permitia que alguns poucos e alaranjados raios solares iluminassem o recinto que misturava o cheiro de mofado com papéis molhados e coisa velha. Via-se o bailar dos mínimos grânulos de poeira dançando iluminados pela pífia cintilância do astro rei ao amanhecer.
            Respirou profundamente, lembrava um recém-nascido chegado ao mundo dos vivos. Seu peito nu sentia a mistura do frio de uma manhã incomum com o gelar do tecer dos dias.
            Respirou profundamente e olhou para o teto. O branco teto com amareladas manchas de sujeira e velhice, o branco teto de gesso com bordas trincadas prontas para cair e esfarelar-se tal qual polvilho velho no escuro chão. O ventilador que debilmente quebrava a barreira do atrito mantendo uma rotação única e monótona, fazendo o único ruído que destoava naquele silêncio enlouquecedor.
            Respirou profundamente sugando nacos de poeira esvoaçante do qual o fizera espirrar, sua garganta ardeu em uma ligeira brasa pela força empregada no espirro, seus olhos recém acordados lacrimejaram fazendo uma mínima salgada gotícula correr por sua face esfriando os espessos pelos da barba.
            Bem ao longe o mundo tomava forma. Crianças iriam para a escola, trabalhadores tomariam sua condução. Trânsito aconteceria e o mundo rotacionaria como de costume, fazendo o dia passar tão lentamente e imperceptivelmente que mal notaríamos o salto de uma segunda para uma sexta-feira. Envelheceríamos e morreríamos sem notar o hiato da vida neste meio termo soturno. O escaravelho diabólico subiria pelas entranhas daqueles que não notariam em si o calendário diminuir e cada vez mais e ficar mais fino ao passar dos dias.
            E deitado na cama, semidespido, pensou nas milhões de coisas que tinha deixado para hoje, coisas que adiaria por horas, dias, meses e talvez, quem sabe, anos. Pensou nas milhares de obrigações e atitudes que precisaria tomar, pensou nos montes de linhas, páginas, prazos, entregas, provas e estudos que precisaria fazer.
            Pensou no hiato dos dias.
            Primeiramente tomou consciência de tudo isto, o que já era sem tempo, e assim decidiu-se levantar.
            Decidiu-se levantar.
            Decidiu-se levantar!
            Decidiu-se, novamente, levantar!!
            Como um inválido em uma cama. Como um morto num caixão, o mesmo não conseguia movimentar nenhum músculo do pescoço para baixo. Suas mãos estavam paralisadas coladas ao corpo, da mesma forma que seus dedos, pés, pernas, cintura, tronco, braços e ombros não movimentavam-se.
            Decidiu-se, mais uma vez, levantar!!!
            Um pequeno rastro de suor brotou da fronte direita, seus olhos buscavam alguma amarra que pudesse o impedir de movimentar-se, alguma brincadeira que alguém fizera ou então algo sobrenatural. A luz solar que entrara não dissipara a escuridão que aquele quarto guardava em seu sepulcro. Apenas como o interior de um caixão, uma pequena fresta de vida e luz mantinham-se como consciência daquele que jaz a própria cama.
            Movimentara o pescoço de um lado para o outro impondo toda a sua força nos tendões, quase como tentasse movimentar uma grande rocha. A força que tomou fora tanta que sua face erubesceu. Sua garganta tornara-se brasa viva. Tentou gritar por socorro mas sua voz tornara-se um breve e esquisito chiado.
            Sentia-se como se um anão repousara sacanamente em seu peito. Um peso mortífero que lhe tirava o ar dos pulmões. Tentava recordar o que tinha sido de sua vida nos dias atrás para estar assim prostrado em sua própria cama sem poder mexer-se. Pensou que nada ocorrera além da rotina e do débil movimentar planetário pelos dias chatos e entediantes. Pensou nos milhares de prazos, nas milhares de coisas, nas contas para pagar, que venceriam em breve, pensou na quantidade de matéria que precisaria estudar, pôr em dia, e não poderia fazer. Pensou nos e-mails que precisava responder, pensou nos escritos a escrever e em muitas respostas que precisava dar nas redes sociais.
            Entrou em desespero e inutilmente tentara movimentar-se, sufocando-se ainda mais. Tentava gritar, mas apenas agudos sons saiam de sua garganta. Tentava movimentar porém apenas o seu pescoço pendia para frente e para trás. Debatia-se debilmente e aquele corpo não respondia.
            Seu desespero tomava conta de seu peito, seu coração tornara-se uma máquina de pulsar sangue.
            Suava de deixar a cama úmida, seu suor escorria pela pele porosa molhando-lhe as frontes fazendo os fiapos de sua franja grudarem à testa. Chorava tentado gritar por socorro, mas sentia-se engolido pela própria inércia.
            Pensava nos prazos – INÉRCIA
            Pensava nas datas -    INÉRCIA
            Pensava na matéria que tinha deixado para amanhã – INÉRCIA
            Seu grito era interno, seu desespero era real. Mordeu a língua com toda força possível tentando com a dor acordar de um possível pesadelo, mas por fim só tornou a piorar as coisas, pois agora sangrava a borrões pela língua. A dor angustiante e a falta de controle fazia sentir-se afogado. Inerte naquela cama sentia que pouco a pouco perdia o movimento do pescoço.
            Debatia-se contra isto, porém cada vez mais tornara-se difícil movimentar o músculo. Pensou na terrível possibilidade de seu coração paralisar e ele ali, naquele demoníaco quarto, perecer. Apodrecer e os vermes comerem sua carne ainda naquela cama que foi seu último sepulcro. Morreria de boca aberta com baratas e aranhas passeando pelas narinas e faringe, formigas alimentando de seus olhos.     
            Debatia-se debilmente.
            Como se alguém amarrasse seu corpo perversamente, logo seu pescoço foi paralisando e seu movimento ficou restrito apenas para os músculos faciais, mandíbulas e olhos. Tentou gritar mais uma vez porém agora nada mais saia. Sua respiração tornara-se cada vez mais dificultosa, porém como um castigo divino, o mesmo era poupado da morte, para que pudesse viver até o último milésimo temporal as agruras de tamanho sofrimento.
            Franzia o cenho como um teste para certificar que ainda assim havia algum movimento restante.
            O desespero tomara conta de cada memória sua. Inutilmente mantinha a língua para fora da boca, pois a mesma sangrava abundantemente e tinha medo de afogar-se no próprio sangue. Sentia cada músculo do seu corpo como imobilizado, sentia ainda o vento bater-lhe nos pés, sentia o calor das primeiras horas da manhã tomando conta do recinto, sentia infernais coceiras que o faziam delirar de desespero em coçar. Porém nada movimentava.
            Perguntou se isto era algum castigo.
            Perguntou se isto era o verdadeiro inferno cristão.
            Perguntou se isto era alguma brincadeira infante de algum demônio de esquecidos cultos do passado.
            Suas perguntas foram em vão e logo mal poderia pensar em novas. Sua língua paralisara para fora da boca e seu maxilar perdera o controle mantendo-se aberto. Temeu a chegada de algum inseto entrar-lhe pela garganta e sufocar lhe com a pior sensação de micro patas descendo o trato digestório o matando de maneira imbecil. Logo o único movimento possível era dos globos oculares, para cima, para direita, para esquerda e por fim, para baixo.
            Via abaixo o corpo imóvel, como um quente cadáver. Inerte na própria dor e solidão, não podendo gritar por socorro, não podendo mover-se. A sua direita, uma pequena escrivaninha com seu computador e algumas folhas. Prazos, escritos, provas, estudos, contas, pessoas. Tudo que deixara para amanhã nunca mais poderá ser feito. A sua esquerda a parede fria e crua que recostava sua cama. Uma pequenina, minúscula e inofensiva aranha tercia sua teia de maneira prática e sutil, quase de maneira artística. Pensar que este pequeno aracnídeo conseguia feitos melhores do que ele mesmo poderia fazer naquela situação. E ao olhar para cima via apenas o metódico e entediante teto de gesso branco com manchas amarelas.  Era o vislumbre do tempo que parava.  Era a imagem eterna de sua mente, aquelas manchas formariam alguma forma aglutina, desenhos e imagens de seres abissais dos quais não valeria a pena descrever por ser apenas um vago delírio de seu interlocutor.
            Logo ao tentar olhar para a janela, sentiu que o gesso branco não saia de suas vistas, debilmente tentava mover os olhos para os lados, mas nada o obedecia. O longo do branco teto manchado era a única paisagem que pela eternidade estaria fadado? Tentara mover novamente os globos oculares porém nada mais movimentava, uma lágrima involuntária desceu pelo rosto incomodando-o profundamente com uma coceira infernal. O único débil movimento que ainda sentia possuir era o ir e voltar dos pulmões em cada respiração do qual não controlava quando viria. Estava completamente inerte naquela cama. Um verdadeiro morto-vivo. Paralisado. Os minutos contando um a um, as horas contando uma a uma, os dias, os meses, os anos, as décadas, os séculos os milênios. Aquelas contas apodreceriam, aquelas provas passariam, os escritos cairiam no esquecimento, para a biblioteca da perdição e do sonho. Ele ali jaz, vivo porém inerte, em pleno desespero com sua cabeça extremamente funcional sentindo todas as sensações do seu corpo inútil, porém não podendo movimentar lhe. Não poderia dormir pois as pálpebras não mais funcionariam, fadado a encarar aquele pálido gesso com manchas amareladas pela eternidade.
            Pensou se este era o pagamento para os anos de procrastinação, pensou se este era o fim para aqueles que protegiam com unhas e dentes o pecado da preguiça. Seu corpo agora inútil pagaria a consequência por domingos que acordara além do horário do almoço, seu corpo pagaria com a dor de não mais mover-se por todas as vezes que reclamara infundadamente o parco trabalho que precisaria exercer. Pagaria pela eternidade, ou por enquanto resistisse aquela inimaginável situação por todos os dias que deixaria algo para fazer amanhã. Ali estava o castigo celebrado para os amantes do sono além de horas sutis.
            Estaria assim condenado.
            Por todos os minutos.
            Por todas as horas.
            Por todos os dias.
            Por todos os anos.
            Fadado a estar naquela cama por toda eternidade.

            Condenado por toda a eternidade a mais profunda inércia.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Ruptura

             
             
            
              Do alto do prédio aquela garota pedia socorro. Era um socorro velado, algo como um silêncio silente que só ela mesmo poderia de fato entender. Não era muito alta, possuía cabelos escuros e rosto muito claro. Olhos grandes e expressivos. Respirava forte, seus pés pequenos e descalços equilibravam-se entre o abismo fatal do décimo sétimo andar e a janela do seu quarto. O vendo forte balançava seus longos cabelos dos quais confundiam-se com serpentes "medusianas" vivas em sua própria vontade. Seu roxo vestido balançava como a capa de um super herói ao implacável vento daquela distante altitude. Seus dedos pequenos seguravam na beirada da janela como um único ponto de equilíbrio. As unhas pintadas de cor azul-bebê traziam traços de nervosismo, alguém que com pura ansiedade talhou e descascou aquele pífio trabalho artístico e feminino de pintara as unhas. Seus tornozelos tremiam diante a altura, sua respiração quase acompanhava o seu coração de tamanha força.
            Lá em baixo, na garganta do profundo abismo urbano, policiais e bombeiros esperavam pacientemente. As luzes piscantes em vermelho claro coloriam os quarteirões. Um pequeno público assistia atentamente ao teatro vivo da menina dependurada no prédio. Seja qual for, seria manchete nos jornais.
            - Vai ser um bom estrago se você cair daí – diz uma voz pelo lado de dentro da janela, vinda do quarto de onde a garota residia, vinda por detrás a surpreendendo e fazendo-a agarrar com um pouco mais de força a parede sustentadora daquela pequena luz de vida.
            - Não se aproxime, eu pulo! – seu tom ameaçador de voz era tremelicante ao que dizia, quase como alguém que tenta cantar embargado de choro, não trazia credibilidade, mas ninguém gostaria de pagar para ver.
            - Eu sei que você pula. Aliás, eu também gostaria de pular. É uma queda rápida até o chão, nem se aproveita o voo.
            - Não se aproxime, eu pulo! – ela mesmo não sabia o que estava pensando. Via-se num turbilhão de sentimentos inexplicáveis, de fatos desastrosos, quase como uma ladeira perpendicularmente infernal sua via tinha tomado rumos sem rédeas. Os cavalos estavam mortos e ela descia a ladeira. Ela tinha a extrema necessidade de tomar o controle de algo em sua vida, tinha a extrema necessidade de saber que aquilo, por mais que fosse um pedido de socorro um tanto quanto midialesco, poderia servir um propósito maior. Existia uma vaga possibilidade dela realmente se jogar, mas isto não entra na equação.
            - Sou recém chegado no prédio, moro aqui no apartamento da frente – ela olhou para ele com mais atenção - quando me disseram que a cidade era movimentada, realmente não estavam mentindo!
            Ela sorriu.
            Sorriso que há tanto não aparecia em seu rosto.
            Os quinze músculos responsáveis pelo sorriso fizeram seu trabalho, há tanto estagnados na própria tristeza. Ela sorriu, sorriu como uma criança curiosa vendo desenho animado pelo sábado matutino. Era um sorriso nostálgico, uma centelha de segundo que demoraram anos para passar naquele microcosmo. Naquele pequeno ato existia uma longa história até a chegada daquele momento, coisas que não estão a convir, coisas que deixamos passar desapercebidos nos ônibus, nas ruas, nas casas, nas nossas famílias. Existem muitas pessoas próximas a se jogar de uma janela.
            Outras já estão em queda livre.
            - Qual é o seu nome – o rapaz pergunta, o nome dela não é importante nesta história. Ela responde com um leve gaguejar e retribui a pergunta.
            E ele responde.
            Ela então sorri novamente, diz que o seu nome é bonito e inconveniente.
            Então ele diz:
            - Isto é culpa do meu pai – ambos riem - me diz, o seu ar-condicionado quebrou e você resolveu tomar um ar fresco?
            - Seria meio polêmico não é? Nada disto, também não sei o que eu estou fazendo aqui. Sinto como se eu tivesse perdido o controle de minha vida, como se perdesse as rédeas e que tudo fosse algo sombrio, algo que não traz mais luz. As vezes sinto que tudo o que como não passa se serragem, que tudo que bebo não passa de uma água de torneira com gosto de cloro. Sinto uma dor, uma dor bem aqui – ela aponta para o peito – que me sufoca sem um motivo aparente. Eu aqui, eu sinto que posso dar um fim a todas as estas incertezas. A todas as cobranças, a todas as minhas promessas infundadas. Eu aqui posso me sentir livre de tudo, posso ter a coragem de ser uma covarde. De me entregar a covardia porque depois que me jogar, simplesmente tudo será apagado como lágrimas ao vento.
            O cenário é o pôr do sol entre os prédios cinzas, as nuvens com uma coloração febril e um acinzentado triste conduz a todo o ato. Um vento sentimental varre as pessoas que assistem tudo em silêncio.
            - Tudo que você me diz é muito bom de se pensar – o rapaz diz se projetando para fora da janela, chegando mais próximo da garota. Ela por reflexo se afasta lentamente ainda com o braço esticado segurando a borda da janela, os pés comprimidos naquele pouco espaço e seu vestido esvoaçante no sentido do vento, quase como uma bandeira púrpura – vendo pela sua óptica, faz todo o sentido do mundo e eu gostaria de me jogar junto contigo, deixar minhas obrigações e as promessas infundadas que um dia eu fiz para milhares de pessoas. Elas pensam que sou um tipo culto conhecedor, muito inteligente e muito sagaz, porém tenho tantos medos e incoerências como todos, além mais.
            Uma lagrima desce pelo rosto da garota e o rapaz continua:
            - Mas não adianta se dar para o abismo final. O nosso tempo está contando e possível que nunca façamos nada notável, mas nossos sonhos nos mantêm aqui mesmo quando eles se tornam impossíveis. Sonhos são coisas que podemos alcançar, podemos mudar, podemos criar novos. Temos nossas responsabilidades, temos aquilo que chamamos de problemas, isto faz parte de nós, isto é o que nos transforma em humanos. Somos a mistura do nosso cotidiano condensada em nossas responsabilidades. O dia a dia que nós traz aqui, as alegrias, as tristezas. Tudo converge a mudança. Não estou aqui para te salvar, não estou aqui para ser o herói da história, mas dou-lhe minha mão para que este estranho encontro possa se tornar uma boa conversa.
            Ele estende a mão.
            E aqui é o momento da ruptura.       
            Você sabe que existem dois destinos.
             1 – Ela diz que sente muito e se joga. Os bombeiros chegam segundos depois, porém nada mais poderia ser feito. Ela cai e todos assistem o desfecho do corpo que cai no frio coração de pedra. As janelas passam rapidamente, o seu reflexo em um memento célere impede que ela se veja pela última vez, o salto de fé, ela vê o rosto daquele rapaz se distanciar, se distanciar até virar um ponto distante, um negro ponto no céu cinza daquela triste cidade. A queda é eterna, todos silenciam como se fosse um pré-minuto de respeito. O vestido roxo como uma asa quebrada de um pássaro baila na correntes de ar junto com os negros cabelos, sua queda em espiral é assistida e lamentada até o baque final. Seco e duro no sólido chão. Um baque que nunca seria esquecido por aquela cidade, um baque sonolento, pesado, forte e frio. Jaz o corpo dela inerte em uma poça do escarlate sangue que um dia foi bombeado por aquele coração que, também inerte, se contraí pela última vez.

            2 – Ela, insegura, tenta agarrar a mão daquele rapaz, temendo desequilibrar, já que o medo da morte voltou a sua vida, busca com cuidado segurar-lhe. Ele a puxa suavemente ajudando-a a subir novamente no parapeito e enfim adentrar o quarto. Os bombeiros chegam segundos depois, o quarto fica lotado de gente e ela o abraça, ele diz que tudo vai ficar bem, que ela tinha sete vidas. Ele faz as promessas que não poderia cumprir e ela as acata, fazia parte da vida, são mentiras sinceras. Sorriem um para o outro. Seu coração bate tão forte que parece que vai explodir. Os braços do rapaz tremem, lentamente vão saindo daquele lugar, médicos perguntam se ela está bem mas tudo aquilo está abafado, todo o som está silente. A história é sobre aqueles dois, sobre o que se passa na mente de milhares e sobre quantas pessoas não se jogaram no abismo de suas próprias perdições. O medo, o escorregar e cair. O desvanecer.
            Se eles estão bem, não posso dizer. Como poderia falar sobre a vida daqueles que passam quase que como desapercebidos por cadeiras vagas nos ônibus, ou nas filas de banco ou, por fim, nas mesas das praças de alimentação. Nunca poderemos descobrir o que cada elo de vida e qual momento de ruptura trará a escolha que decidirá o destino de tudo. Tudo é a questão de uma simples escolha.
            Sobre o destino dela, deixo para o leitor.
            Tudo depende do ponto de vista.

            Se o seu copo está meio cheio ou meio vazio.

domingo, 28 de agosto de 2016

O relógio dourado

         
             Eu não sei ler relógios analógicos. Nem sei se é certo dizer que você “lê” as horas, mas isso não vem ao caso. Também não quero dizer que se eu olhar para um dito “relógio de ponteiros” eu não vá saber que horas são, mas tenho que fazer os cálculos da tabuada de cinco e isto pode levar algum tempo. Sempre tenho que encarar aqueles relógios dos quais não encontram as marcações de horas e minutos, e isto para mim é uma dificuldade. Também aqueles que possuem números romanos no lugar dos clássicos números arábicos. Não sei o verdadeiro motivo de usarem números romanos, eles não possuíam o conceito de zero. Tão difícil analisar ou escrever o conceito de vazio.
            Também pode ser dito que vazio é depressão.
            Os gregos usavam o “ômicrom”, que é a primeira letra grega da palavra “oudem” que significa “nada”. Os gregos possuíam um conceito concreto de nada, ou de vazio. A própria filosofia grega trazia em seu cerne algo em volta do vazio e do nada. Segundo Aristóteles:  o movimento pressupõe o vazio do qual a matéria se desloca. Isso tudo pode se definir como uma amalgama de ideias desconexas.
            Eu possuía um belo relógio de ponteiros, ou analógico. Era um relógio dourado, imitando falsamente ouro, com uma tira de couro marrom, não possuía muitas diversidades além do simples fato de ler as horas. O metal frio era daqueles que machucavam o pulso por ter sido feito fora de medida, e ele era um pouco pesado, seu uso incomodava. Eu sempre o carregava quando saia, era uma inutilidade gigantesca, haja visto que os relógios de bolso voltaram a moda com os celulares. Com aquele relógio eu via o tempo passar e via como todas as coisas tornavam-se vazias.  O incomodo do seu peso e o tilintar do tempo passar soava como um aviso dos dias que chegariam e das coisas que poderiam se suceder.
            Sempre que alguém me perguntava que horas eram, eu ficava sem graça, eu mentia a hora, pois eu demoraria muito em dizê-la. Talvez seja assim que muitas das pessoas vejam como é o passar do tempo, você acredita que tem o controle absoluto do que está se passando. Você carrega o seu relógio dourado no pulso, você controla cada segundo passado sem saber o real significado do que são aqueles segundos. Se alguém lhe pergunta que horas são a resposta não será significativa.
            O tempo passa tão devagar quando se quer que ele passe rápido.
            O tempo é implacável.
            É possível que o mais antigo símbolo hindu para o zero seja o ponto em negrito que aparece no manuscrito Bakhsali, mas a associação com os símbolos gregos são meras conjectura.  Às vezes, trazemos algumas semelhanças em fatos que, quando realmente paramos para elucubrar sobre tais acontecimentos, tudo parece ser realmente divinamente coligado. Por cima disto, muito se acredita nas obscuras forças da coincidência, como uma súplica divina para a nossa ignorância, mas eu prefiro acreditar que acordei com o pé direito. Fazer um comparativo de vida é semelhante a buscar o preço mais barato depois que já comprou o produto.
            Em inscrições manuscritas, o símbolo utilizado para assinalar os espaços em branco era chamado de sunya, do qual o significado é “lacuna” “ou vazio”.
            Talvez este sunya seja a vida da maioria das pessoas que você vai conhecer.
            Talvez esta lacuna ou vazio tenha sido o sonho que você abriu mão, ou aquilo que deixou de fazer por mera preguiça.
            Sifr, em árabe, significa “vago”. Foi transliterada para o latim como Zephirum ou Zephyrum e com o passar dos anos foi se chegando a palavra e cifra conhecidas como  “Zero”.
            E o com tempo se aproximando de um final, que pode ser próximo ou tardio, disto não se tem controle, olhamos para nosso pesado e inútil relógio de ponteiros, ou digital, sem entender o que ele diz, fazendo os cálculos necessários para dizer que horas são.  Observar o tempo ao todo, e notar o vazio em que as coisas tornam, talvez uma mistura algébrica que no fim das contas, acaba sendo uma inutilidade plena.

            Não me envergonho de dizer que não sei ler relógios analógicos. Estou feliz com meu simples e prático relógio digital.  Mas o tempo é único, e o passar dos anos, digitalmente ou analogicamente, ainda são tão pesados quanto o frio daquele relógio dourado no meu pulso.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

ENTROPIA


                                         Eu vi as melhores cabeças da minha

                                                       geração destruídas pela loucura…
                                                                                             - Allen Ginsberg


                                                                                 

I







Embebedai-vos de vossas vicissitudes e demostrai o quão pobre tua alma és! Sôfrego tal juventude embebecida nos umbrais do tempo. Aos pedantes que nas calçadas jazem ímpios a própria carne. O diabo no fundo da alma daqueles que nunca mais voltaram das suas vicissitudes sorrirão. Ao mesmo tempo que os miasmas de uma quente noite de sexta-feira encharcam a vida e lama de uma puta sociedade.

- Aonde estão teus filhos!!? – gritai em plenos pulmões nos ditames do jornalismo policial. Almoçaremos com os cadáveres daqueles que, dito pela sociedade, mereceram foder-se com tiros nos rostos.

Vinde a mim vento norte que trará o desespero.

As vozes dos diabos obscuros trarão graça e desespero para todos aqueles que se fazem de loucos para que podem furar filas. Os eternos coletivos lotados com suas cadeiras reservadas. Os excessos daqueles que se fazem de pobres & enfermos para simplesmente tomar-lhe o dinheiro da cachaça.

Ei-lo de representar a lua com suas nudezes.

Ei-lo de representar, ganhando a vida a soltar malfeitores.

Ei-lo casto e puro pelas catracas rolantes da vida moderna. Sabes que aos enegrecidos espelhos não escaparão. E que a caça dos monstros inexistentes, aqueles de bolso, não trataram de nenhuma épica vitória além d’alma da vida póstuma. Se tais versos fazem fronte as primeiras tristezas do homem, trata também da mais bela primavera do ser.

Ígneo o espírito dos bêbados – todos eram jovens.

Incólume era a vaidade das meninas até que o estuprador viril as atacou – todas eram jovens.

Ignóbil caráter desfigurado da humanidade que protege o crime e criminaliza a vítima. Eis o aborto! Eis o aborto! Monstro de Frankenstein que andará errante pelas aturdidas terras viscerais e que terá que comer o fruto do trabalho em um “Call Center” maldito.

Diga-me óh senhor dos inférteis, por onde andam as mentes sãs do nosso mundo?

Diga-me óh senhor das profundezas, por onde andam as mentes que não decaíram como átomos a pleno pus.

Com o âmago machucado irei deitar para que os sonhos não atrapalhem a minha realidade. Com o triste pesar que os dias não tardaram a deslizar pelos ditos umbrais que o tempo trata a esconder, trata a maltratar, trata a trazer a tona, mostrando que vermes & insetos tratarão de subir em minha perna enquanto jazia em sono. O festim diabólico estará preparado para todos aqueles que tentarem brindar com abóbadas craneanas como fizera outrora Byron.

Brindo pela ganância.

Brindo pela velocidade de internet.

Brindo pelo “streming”

Brindo pelos heróis mortos.

II

O ruar do jovens em plena madrugada trás de maneira ignóbil seus vícios para o mundo. Munido do pior vinho e dos piores cigarros, os mesmos andam pelos carros que belicosamente buzinam buscando chegar até suas residências para terem paz e sossego. Em plena algazarra tal massa virulenta desfila em suas vergonhas, janotamente com os mais caros panos comprados por seus velhos com a maior boa vontade do mundo. Gritam como uma nova geração em guerra buscando liberdade & princípios dos quais não sabem qual. Gritam entre os veículos mostrando suas pendeguices, suscitando guerras sem tergiversar ao mundo sobre suas pacóvias ideias.

- Gritemos – disse sobre um dos carros a pular balançados bandeiras de times de futebol.

- Gritemos – disse um ao outro por festejar uma festa que não eram deles. Batalha ganha sem uma batalha.

- Gritemos – e o silêncio destinou uma brincadeira pueril.

Todos estarão caídos ao amanhecer, com água nos rostos jogadas pelas fétidas urinas dos asfaltos encharcados. A fina chuva da noite quente lavará a alma daqueles que ainda acordados percorrerão as infindáveis estradas de escuro petróleo.

Em passos largos andarei por entre estes, olhando seus rostos sem censura. Não encontrarei irmãos de consciência, muito menos consciência nestes irmãos. Nada poderei indagar, visto que suas pupilas dilatadas mostram o que fora consumido perante a madrugada. Apenas manterei meu silêncio, minha cabeça baixa, e meu senso de humor ferino ao observar aquela guria de cabelos azuis-esverdeados gritar para os quatro cantos do inferno o quão feliz estava.

Triste criança.

Mas amanhecerá, e os primeiros raios de sol iluminaram os dias e as noites. As igrejas baterão os seus sinos e os carros buzinarão em logos engarrafamentos. A vida começará a andar novamente e a morte esperará o primeiro acidente da semana.

A vida voltará ao normal.

Acordarei assustado perante ao alarme do celular. Não terei noites de sono tranquilas enquanto o atraso me custar o salário.

Acordarei assustado com a vida. Não tardarei a dormir novamente enquanto o fantasma das eras me tomar as rédeas impedindo-me de rejuvenescer.

Ao Horizonte Perdido de Milton dou-me a rota impertinente. Não sobreviverei aos frios do Himalaias, muito menos às provações dos velhos e eternos sábios.

Perderei diante do jogo da vida, sem tempo para ler os grandes clássicos ou assistir as maravilhosas séries da Netflix.

Mas eles estarão lá. Doentes de sono e dor.

Doentes de narcóticos.

Engasgando-se com o gástrico suco de seus estômagos.

Mil garrafas do mais barato vinho pelos bueiros & córregos.

Não haverá mais vida, não haverá mais juventude. Tornará a chover o enegrecido chorume da peste & dengue. Tais cientistas de um futuro dístope, emburrecidos pelas mídias e pelas massas, traçarão os rumos de um futuro perdido em caóticos redemoinhos de puro gozo e luxuria. Faltará gramáticas, faltará adjetivos para levantar a fleuma de bandeiras partidas. Serão massas de manobras de políticos partidos parcos, tratando os petizes com sua pérfida versão do Necronomicon, utilizada para controlar a mente daqueles viciados no pouco estudo.

Estarão nas faculdades.

Estarão nas universidades.

Construirão templos.

Assassinarão a ciência.

Apenas um único túmulo com a inscrição de “aqui jaz o futuro”

III

O tempo não tardará a terminar.

Os imponentes versos dos antigos sobreviverão as massas ignorantes e a queimada dos livros.

Walt Whitman estará guardado na minha estante.

Hermann Hesse estará guardado no meu coração.

Chuck Palahniuk está guardado na minha mente.

Clarice Lispector está guardada na minha metafísica.

Jean Jacques Rousseau será de quem roubarei o nome.

Nos autos do Neo-Iluminismo, acenderemos a luz diante a escuridão pernóstica de crentes & infames. Seremos guilhotinados, de certo, porém marcaremos a fogo a história dos indecentes.

Lutaremos até a morte, como Hemingway o fizera.

Esnobaremos com o humor negro de Woody Allen.

Aristóteles será meu amigo de bebida.

Willian Blake será o porteiro do meu inferno pessoal.

Descobriremos todos juntos os deuses perdidos dos cantos abissais da natureza. Enegrecidos e impiedosos deuses impronunciáveis. Trazidos até nós através da magia literária e dos pentagramas e outros símbolos cabalísticos. Traremos até nós deuses inventados pela literatura apenas para que possamos rechear os versos sádicos de um desocupado noturno.

Aos monstros de Howard Phillips Lovecraft.

Aos loucos de Stephen King.

Ao corvo de Põe.

Levantaremos os cálices e brindaremos às escondidas, pois lá fora a guerra arde, a batalha arde, a peste arde. Não seremos reféns de religiões imorais ou deuses monetários apenas para o sustento do homem comum. Através do estudo e da ciência traremos um novo mundo, mesmo que imaginário, mesmo que impossível, mesmo que apenas como uma ficção pobre e inútil.

Levantai-vos.

Desmoronai.

Frugal o verso declamado em tão simples poema, feito de maneira mesquinha, feito de maneira inútil. Fleumática será a ideia aplicada como uma tênue semente, plantada na mente sã por um louco psicopático, porém muitíssimo funcional.

Levantará pela manhã, desejando os cinco minutos finais.

Levantará e olhara, com olhos embotados de lágrimas, os perdidos abismos da loucura.

Entenderá que tudo é uma mera teoria

E como teoria.

TUDO
CONVERGE
AO
CAOS.

            

domingo, 21 de agosto de 2016

O PARADOXO

           
            Temos por dia uns trinta minutos para conversar.     
            Trabalhamos no mesmo lugar, uma empresa que não vale a pena citar o nome, mas é conhecida pela mão de obra escrava. Também não vale a pena descrever o objeto de trabalho, pois é uma perca de tempo tanto para mim, o escritor, quando para o leitor que está aqui de bom grado lendo e comendo um delicioso sanduíche de peito de peru.
Eu ainda não jantei.
O que nos divide são dois andares. Tenho um pouco de medo prático de elevadores. Andar em uma caixa de metal para cima e para baixo dependendo apenas do bom grado de Deus para querer cometer um assassinato. Por mais que eu confie nos amigos cientistas, não gosto de dar sopa para o azar. Também é prático subir pelas escadas e tomar isto como um exercício forçado para eliminar os rolos de banha que minha barriga suporta.
Comer é o melhor prazer social do mundo.
 Vamos chama-lo graciosamente de Neurótico Hipermetrófico.
Nossas tentativas frustradas de criar uma nova filosofia ou chegar ao cerne de um novo pensamento mundial foram inúmeras. Sempre nos reunimos tão brevemente e ao passo das pausas dos nossos fatídicos empregos, tentamos buscar um novo conhecimento filosófico, científico, psicológico ou então tentar desvendar se há moralidade no Batman deixar o Coringa vivo ou não.
Também discutimos se o roteiro do filme dos Vingadores é realmente bom. 
Não o bastante, tentamos chegar a algum lugar com nossas teorias. Estávamos dissecando a lógica platônica através dos escritos filosóficos utilizada na República de Platão, tentando buscar e analisar decerto o lugar dos artistas e dos filósofos na nova república e se isto seria aplicado a esta nova era. Tentamos analisar através de poucos escritos e comparativos com as vivências atuais e as bases utilitárias para uma vida moderna através da velha filosofia grega.
Claro que fomos interrompidos por um dos nossos amigos em comum do qual chegava perguntando se assistimos ao jogo do Corinthians.
Denominamos estes tipos de interrupções de “paradoxos”.
            Um comparativo a estas interrupções seria Freud e Breuer nas portas de difundirem o pensamento da psicanalise, serem interrompidos por suas digníssimas esposas sobre qual vestido seria mais adequado.
            Ou então antes de Einstein conseguir chegar á alguma conclusão na teoria da relatividade, alguém interrompe-lo com algum trabalho inútil como arrumar a escrivaninha.
            Pior ainda, no clímax das conversas de Newton e Halley, o do cometa, próximo da difusão da física mecânica para a modernidade, alguém chegar e atrapalhar a conversa tentando convencer que a Terra é chata e parece um pastel.
            Conversamos sobre tais paradoxos tentando chegar a alguma conclusão de como conversas interessantes são atrapalhadas por assuntos frívolos,  quase como um ímã que atraí o tipo de pessoas vazias. Meu amigo, Neurótico Hipermetrófico sabe distinguir muito bem quais pessoas possuem algum tipo de conteúdo a ser estudado e quais pessoas são tão vazias quanto uma modelo da Vogue. Dissecamos este tipo de personalidade quase como uma rã na aula de biologia. Notamos que tais pessoas tem medo de tentar se aprofundar em algo, podem ser até oceanos em conhecimento, mas não passam de dois centímetros de profundidade. Estávamos quase chegando em uma solução prática para este tipo de  personalidade quando nosso amigo em comum, com um sorriso no rosto, nos pergunta se tínhamos assistido o jogo do Corinthians.
            Meu amigo Neurótico Hipermetrófico limpava seus óculos quando cheguei até seu posto de trabalho às onze da manhã. Era um sábado desnecessário, daqueles que é digerido pelo tempo de uma maneira ácida. Em roda, umas pessoas conversavam  sobre narcóticos. Quando colocamos nossas opiniões no assunto, buscando um conceito lógico dentre tantas coisas, jogando base da psicologia tradicional e alguns testes realizados por psicólogos respeitáveis  desvendamos coisas que um dia iremos traduzir e publicar, mas este não é o momento.
            Ali havia um ambiente fértil de puras ideias, coisa bem rara de se ver. Quando não temos este tipo de interrupção. Podíamos chegar fácil a uma conclusão cientifica como a um roteiro de cinema. Poderíamos criticar os grandes cineastas e analisar sua obra como um todo. Analisar peças literárias como também traçar as linhas de um novo modelo educacional.
            Claro que também pensamos em alguns crimes, igual aos amigos do filme “Festim Diabólico”  mas isso é tema para outro texto. Entra mil milaborâncias acabamos rindo e imaginamos o qual imorais pode ser o ser humano. Pensamos na moralidade como um todo, um meio de chegar a mais profunda carne da pele humana e trazer a tona toda sua imaginação fértil de milhares de pensamentos e emoções que o ser  humano é capaz de fazer. Quase como um solo a ser adubado, sentimos que estávamos próximos de resolver o problema dado ao número 42 antes mesmo do fim do nosso planeta. Tudo dependia de mais alguns minutos de conversa, porém, novamente, fomos interrompidos pelo paradoxo:

            - Ei máh, assitiram ao jogo do Corinthias!?

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

O estranho caso da geladeira na calçada

           
             Havia uma geladeira no meio da calçada.
             Achei peculiar o fato de uma desavisada geladeira estar solitária no meio da calçada. Quando a vi pela primeira vez, ela ali, sozinha, sem ninguém para conversar. Enchi-me de questionamentos sobre como, quem, o que e quando ela fora parar ali, no meio da calçada. Sozinha sem outros utensílios domésticos para trazer coerência a cena. Ela, parada em frente ao ponto de ônibus onde costumamente eu desço quando venho do trabalho.
            Estaria esperando a condução?
            Havia uma geladeira, quando digo geladeira, eu faço isso sem aforismo ou tentando pagar de mestre da metáfora. É tácito. Uma geladeira, daquelas de esfriar as coisas, no meio de uma calçada, daquelas onde os pedestres não são atropelados (ainda) pelos carros.  
            Sabe quando olhamos algo de relance e ainda não acreditamos no que vemos. Quase quando vemos um vulto pelo canto dos olhos e quando olhamos novamente ele não está mais lá.
            A geladeira estava lá quando eu olhei novamente.
            Chegava a ser bizarro, chegava a ser incoerente. Havia uma geladeira, uma G.E.L.A.D.E.I.R.A. numa calçada do lado de um ponto de ônibus. Notoriamente ela não estaria ligada a lugar algum, não estaria gelando coisa alguma.
            Estaria alguém morando ali dentro?
            A Máfia teria escondido algum cadáver ali?
            Questionei-me durante alguns minutos antes de decidir voltar e desvendar o mistério da geladeira. Agatha Christie e Conan Doyle teriam orgulho de mim, dando uma de trupe do Scooby Doo e desvendando o mistério. Quando deparei-me ao grande monólito branco repousado na triste e esquecida calçada de paralelepípedos disformes, dos quais machucam os pés fazem velhinhos tropeçarem e caírem para a morte. Tinha a base bem cimentada ao solo, dias após descobri que não adiantou nada e a coitada foi furtada mesmo assim, era branca com um tom quase amarelado e não trazia nenhuma mensagem realmente glorificante que trouxesse alguma pista.
            As pessoas em volta apenas olhavam para ela, sem questionar ou ao menos possuir curiosidade.  As pessoas estão mortas ao nascer, impressionante!
            Prostrado em frente aquele grande mistério, quase como um explorador olhando para a tumba misteriosa do faraó, procuro algum detalhe, alguma evidência que pudesse mostrar a que fim aquele monólito doméstico possuía por estar ali, naquela calçada, naquele lugar. Poderia ser um Totem de alguma antiga e esquecida tribo indígena do qual amaldiçoara o forasteiro curioso com alguma alegoria terrível. Também poderia sair ácido de suas frestas corroendo-me a carne por ser curioso demais ou, pior, poderia ser uma bomba esperando um curioso ativa-la e virar uma eterna manchete nos jornais.
            Acho que estou com muitas horas de seriados.
            Mas era irrefutável a imagem que havia uma geladeira na calçada.
            Parada, silenciosa, completamente  inerte.
            Tomei coragem para desvendar o temido mistério, não conseguiria repousar no meu travesseiro e dormir uma noite tranquila se não resolvesse minha curiosidade humana. A curiosidade que levou o homem da caverna a lua é a mesma curiosidade que me fez puxar aquela porta de geladeira.
             Ainda que pudesse me assombrar com o que me esperava lá dentro, tanto quanto um filme de terror que telegrafa o susto para o telespectador com a ausência de música, o clima soturno e o compasso da cena.
            Meu coração palpitava fortemente, estava a um passo de desvendar o puro mistério de uma vida em um minuto. Claro que estou no máximo da minha extravagância narrativa (peço-me até francas desculpas se floreei esta narrativa com tantos detalhes obtusos que até fizera você olhar sua própria geladeira com outros olhos). Ao puxar aquela pesada porta, e adentrar-me naquela Narnia obscura de satânicos monstros, me deparo com o impensável.
            O inimaginável Lovecraftiano.
            O impublicável (mentira).
            Deparo-me com livros.
            Livros velhos, revistas, antigos encadernados. Bons livros.
            Explicando o processo: você toma um livro de empréstimo, sem precisar de cadastro ou qualquer outro tipo de formalidade, e assim o devolve depois. Ou doa outro livro no lugar, a escolha acaba sendo da pessoa que levou. Era uma magnânima surpresa encontrar tal projeto em uma cidade que pouco a pouco tornou-se viciada nos escuros espelhos que são os aparelhos de celulares, e a solidão inimaginável que existe no microcosmos das redes sociais.
            Tomei alguns livros de autores para mim desconhecidos. Descobri boas perolas da literatura do qual passaria por minha vida completamente despercebidas. Tomei os livros prometendo levar alguns outros para manter a corrente literária. Pela falta de costume da gentileza humana, senti-me um ladrão saqueando tais bens de uso comum. Ainda olhei para trás algumas vezes antes de chegar à esquina esperando alguém me dizer que eu precisava devolvê-los.       
            Tais livros estão na minha frente neste exato momento. A geladeira continua lá, guardando bravamente tantas obras silenciosas da nossa opaca literatura, dentre outras revistas e afins. Aquele monólito doméstico trazendo curiosidade para olhos curiosos e passando despercebidos para os escravos dos escuros espelhos, lá está silenciosa, misteriosa, metálica. Uma geladeira na calçada desenhando uma paradoxal paisagem da minha cidade.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Pequenas Tragédias

           
           

            Ele está morto.
            A antítese do conto de Frankestein, quando o doutor, do qual teve o nome manchado pela história, finalmente dá vida a besta e grita “está vivo!”.
            Tomou o rumo que todas as coisas tomam.
            Foi meu parceiro nos momentos de tédio, foi meu parceiro nos momentos que eu não queria compartilhar meus sentimentos com o mundo. Apenas o utilizava para abstrair, ou para angariar conhecimento. Uma rota escapista, covarde, mesquinha para que eu simplesmente fique invisível ao mundo. Quase como o “Um Anel” de Sauron, ou a capa da invisibilidade do Potter. Simplesmente o mundo em torno sumia, eu desaparecia.
            Mas este aparato mágico está morto.
            Talvez, de fato, eu o tenha assassinado sufocado pela noite. Quando meu pesado corpo tombou sobre sua frágil estrutura e assim silenciou o meu mundo. Talvez minha insônia fatídica, meu cansaço crônico ou minha breve depressão mundana me fizera dormir, adormecer tão pesarosamente que enfiem, matei-o sufocado.
            Meu fiel amigo e escudeiro.
            Ele está morto.
            Nataniel Baldwin fora o inventor de tal aparato. O pai dos fones de ouvido. Mal sabia ele que deixaria tanta gente com deficiência auditiva. Interessante como o nome dos inventores das coisas mais simples as vezes são ignorados pela história e tempo. Simplesmente são passados em branco, como se tal coisa de tamanha importância não fosse realmente relevante.
            John Harington foi o inventor da privada. Coitado, queria ser escritor.
            László József Bíró foi o inventor da caneta esferográfica. Todo mundo tem uma caneta perdida em algum lugar e acredito que ninguém tenha ao menos escrito o complicado nome deste homem com o seu invento.
            Estou utilizando um teclado, como podem notar.
            O fato destes inventores nunca conhecerem a luz da fama ou dos meus fones de ouvido terem morrido são o resumo crônico do título “pequenas tragédias” que ao certo, são pequenas tragédias.
            Como perder o ônibus.
            Como tirar aquela nota baixa.
            Como uma caneta estourar no bolso da sua calça favorita.
            Como não ter papel higiênico na privada depois de uma boa utilizada.
            Ou como o seu fone de ouvido parar de funcionar. O fato de não estar ouvido música para silenciar as ideias inquietantes que tomam a cabeça, ou silenciar o mundo que as vezes torna-se em demasia irritante pode sim configurar-se uma pequena tragédia. Uma mínima tragédia equânime em uma escala de pequena a grande tragédia. Quase como um efeito borboleta recheado do meu puro hedonismo desenfreado. Agora com este texto em homenagem a este amigo de horas e horas a fio, guardo-o com um funeral digno de reis e lordes. Onde moedas serão colocadas nos seus olhos para que possa pagar a passagem do barqueiro e ir pelo rio Estige ser julgado por Hades ou outra divindade mística.
            Provavelmente, nesta semana, eu compre outro fone.
           


segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Não repare a bagunça


               


             A apresentação deste escritor será feita de uma maneira péssima. Seria muito curioso escrever um texto apresentando a mim mesmo na terceira pessoa. Talvez seja até uma espécie de egocentrismo mascarado, ou alguma loucura escondida que logo virá a tona e me tornará o monstro conhecido por todos e por ninguém. Obviamente este escritor, que anda com tantas mil malucas ideias na cabeça, pode ao certo escrever sobre milhares de coisas e esta é a ideia deste lugar.
                Mas isto não vem ao caso.
            O escritor que está digitando este texto no seu computador velho, no seu quarto pequeno, nesta noite quente está aproveitando para por as ideias em dia. Ouve uma música feita de batidas instrumentais, algo um pouco com uma “vibe” de tomar um ônibus na madrugada e ver até onde ele pode parar. Saber que seria impossível não imaginar tais coisas em um lugar tão pequeno, fazendo ruídos irritantes com as duras teclas do teclado.
            O mundo moderno é uma maravilha, num exercício de pura atenção, o escritor está mudando o foco do texto para uma conversa em uma rede social, para voltar ao texto. Vivemos num mundo conectado e estas conjecturas são possíveis na medida do possível.
            Claro que este pequeno texto não terá nada demais, é apenas uma apresentação. Ele falhará miseravelmente como apresentação, mostrando a ineficácia do autor em uma autodescrição fiel e sem floreios. O mesmo olhará no espelho as duas da madrugada buscando algumas marcas da velhice. Tem vinte cinco anos e sente-se como se tivesse duzentos. A calvície já ataca e o estomago já não age de maneira normal.
            Mas isto também não vem ao caso.
            Quase meia noite.
            O silêncio da rua pode traduzir em um profundo mistério plano, pairando sobre as nobres cabeças dos que dormem de noite e trabalham no dia seguinte. Falarei mais do meu trabalho em outra oportunidade, pois agora descrevo este, o meu de escritor.
            Escritor amador! – gritam no meu interior.
            O editor de textos, meu fiel amigo, grifa em rubro minhas deficiências gramaticais. Este é apenas um texto inaugural, não tem uma ideia fixa ou um causo que, você leitor, vai gostar de ler. Alias, eu diria que você poderia se sentir em casa, mas que não deveria reparar na bagunça, pois ainda está em reforma.
            Tenho uma teoria sobre castelos, mas deixo isso para outro momento.
            O editor de textos me sugere maneiras melhores de escrever e compor um texto. Fazê-lo de maneira arbitrária, ou ao menos, acatar sua ajuda e assim escrever algo com uma clareza maior acaba sendo mais fácil. Troco “s” por “z” e ele corrige automaticamente. Santa tecnologia.
            Mas isso não vem ao caso.
            O escritor termina seu texto. Ele fará como crianças sempre o fazem: um desenho completamente sem sentido que  mostrará para toda a família e receberá afagos na cabeça. “Que bonito!” Eles dizem sem ao menos entender o que é.
            No fundo, o autor não sabe o sentido.
            No fundo, o escritor sabe que não faz sentido.
            Mas o texto está lá, e não vem ao caso.
            O escritor também está. Respirando e digitando. As ideias estão em dia. E tudo faz muito sentido, ou é realmente muito claro. E a batida no ouvido continua. Aquela vontade louca de sair em meio a chuva da madrugada, sentir a água no corpo, sentir-se pleno.
            Eu deveria estudar crase.
            Isso não vem ao caso.
            Então, caro leitor, sinta-se em casa. Não repare a bagunça, não repare a loucura, não repare a falta de convicção, não repare a má gramática, não repare as ideias roubadas, não repare os cadáveres, não repare a podridão, não repare os versos feridos, não repare as dores do passado, não repare os dias de fúria, não repare o dente quebrado.
            Sinta-se em casa.
            Do seu amigo, Míope Psicopata.