domingo, 20 de novembro de 2016

O INÚTIL


As crianças foram as primeiras a chegar.
            Aquele corpo jazia inutilmente ao chão, algumas velas foram acesas e uma fino lençol branco posto em cima do morto em respeito ao defunto, destruindo assim toda a cena do crime. Um apinhado de pessoas logo circularam, como se fosse um grande evento e alguém fosse distribuir balinhas. Era uma mudança drástica de rotina para aquelas humildes pessoas que passarão a vida a assistir televisão e brigar com o comentarista do futebol. Aquele corpo, morto e inerte, não mais o faria. Toda aquela multidão em volta do corpo, quase como se festejando, não a morte do pobre diabo, e sim o fato da rotina ter sido desvirtuada por um fato, um evento que seria marcado na débil memória de todos os ali presentes. Tudo seria muito comentado durante as semanas que estariam por vir, analistas da tragédia humana trariam deduções tão Sherlockianas que nem o próprio Sir. Arthur Conan Doyle pensaria. Seria o “Estudo em Cinza” referenciando o livro deste consagrado autor misturada a coloração o asfalto. Também seria um show para a mídia. Chegaram antes que a polícia, nos carros identificados com o nome dos canais. Lindas repórteres saltaram dos bancos da frente enquanto os câmeras gordinhos com anos de guerra segurando aquele trambolho de uns 13 quilos por cima.
Aquele senhor gordinho, casado, câmera, ou cinegrafista, de número no cadastro de pessoa física tal e identidade tal, com endereço eletrônico (vulgo e-mail) tal, domiciliado em um casebre alugado que seu parco dinheiro pode alugar, donde reclama com a esposa sobre as dores do ombro e sobre as vontades das repórteres patricinhas que desfilam com suas vontades e vaidades, achando-se as Louis Lanes da vida, porém indo cobrir eventos e feirinhas de lingeries e mortes de zés-ninguém.
Eram treze quilos nos ombros.
Ela falavam com uma maneira bonita, maquiagem muito bem feita. As mães devem sentir um orgulho fantástico em mostrar para as amigas mais um homicídio que a filhinha que fez faculdade com financiamento estudantil está cobrindo.
Acho que o certo é cinegrafista.
O nome do morto não importa.
Porém, sabe-se que um dia antes ele estava bebendo num bar próximo a sua casa. Tinha sido note de jogo, um jogo desimportante de times falidos daqui da capital. Vinte quatro pessoas nas arquibancadas, dezesseis de um time e o resto dou outro. Eles gritavam e os grilos, e os carros, e a desimportância falava sempre mais alto. Um dos times conseguiu a proeza de fazer um gol. O atacante alcoólatra vibrou como se fosse o final do campeonato mundial. Ele mesmo não sabia se mundial era escrito com “L” ou com “U”. Por, fim, em uma gozação cotidiana de bar, o mal aconteceu. Foram cinco ou seis facadas, ninguém conseguiu contar ao certo. Foram facadas certeiras, na barriga, que transformaram a branca camisa de partido político em vermelha, não fazendo alusão a nenhum partido com esta cor. O homem saiu do bar cambaleando, sem pagar a conta e conseguiu andar até por muito tempo, antes de desvanecer ao solo, morto, esquecido, inerte.
            Mal sabia ele que morrer seria a coisa mais importante que fez na vida.
            A polícia chegou com uma hora e meia de atraso. Eram três carros da polícia civil, dois da polícia militar, uma ambulância (?) e um camburão do I.M.L. Fiquei esperando pelo tanque de guerra, pela marinha e pelos caças franceses da força aérea, porém acho que eles nunca chegaram. Fizeram perguntas sobre o que, quem, como, aonde, que horas, e qual era a senha do Wi-Fi. Os peritos do I.M.L mais sujavam a cena do crime do que analisavam, eles tomavam como evidência as bitucas de cigarro que eles mesmos fumavam. Não muito longe dali, um capitão, tenente, sargento, sei lá, da policia, falava termos difíceis como “elucubração” e “a priori” para a repórter. Creio que devam ter comprado algum manual de termos inúteis em latim ou coisa parecida. Normalmente eram policiais gordos, com coletes à prova de balas parecendo babydolls, revolveres malemolentes presos à cintura e pizzas de suor debaixo dos braços. Andavam de um lado para o outro se arrastando e reclamando do calor. A patente mais alta sempre ficava no carro gozando do ar-condicionado.
            O pobre homem é jogado em uma caixão de metal sujo, e esta caixa de metal é empurrada para dentro do camburão. Sua última carona no Uber fúnebre. Desta vez não havia nenhuma recém viúva dando escândalos e beijando o crânio inerte do presunto. Desta vez não tivemos tantas lágrimas. Creio eu que até alguns fogos de artifício soltaram, mas não por ódio ao que morreu, mas sim pelo evento, pela quebra de rotina, pela multidão. Por terem visto gente dos bairros nobres pisando naquele asfalto carcomido, que é apenas lembrado de quatro em quatro anos. A favela ou comunidade terá sua visibilidade nos jornais. As pessoas almoçarão vendo o bairro da periferia e seu morto famoso.
            Pobre do diabo que morreu. Porém fizera algo de notável na vida. Tomara algumas facadas e fora cambaleante morrer em um lugar sereno. Poderiam até fazer estátuas em homenagem a este inútil, poderiam visita-lo no cemitério, deixando flores, deixando mensagens. Todos os jornais do Brasil noticiariam que alguém levou um tanto de facadas, não disse “et tu brute” e caiu de cara no chão, manchando o asfalto velho do prefeito velho da cidade velha do bairro velho. A CNN noticiaria sua morte com muito pesar, a Al Jazira noticiaria seu falecimento com muito pesar. O presidente dos Estados Unidos da América faria um minuto e silêncio em sua homenagem, durante a abertura do Super Bowl. Tudo em memória da morte daquele pobre diabo que foi defender seu inútil time por ter perdido de maneira deprimente para outro inútil time de um esporte tão sem graça quanto o futebol.
            Porém todos tem memória curta.
            Falariam sobre o homicídio durante algum tempo.
            Falariam do próximo homicídio: Criança que levou quatro tiros na cara por dívida de droga.
            Falariam do estupro da menina de quinze anos, efetuado pelo seu próprio padrasto na cama da mãe.
            Falariam do roubo de carro nos bairros próximos, e como os bandidos atropelaram uma família inteira que voltava da praia.
            Falariam do covarde caso do vendedor de DVD’s piratas que fora levado aos arrastes de casa por ainda vende este tipo de mídia, mesmo com a invenção da Netflix.
            O povo tem memória curta.
            E sobre o morto? Tão inútil quanto antes.