As crianças foram as
primeiras a chegar.
Aquele
corpo jazia inutilmente ao chão, algumas velas foram acesas e uma fino lençol
branco posto em cima do morto em respeito ao defunto, destruindo assim toda a
cena do crime. Um apinhado de pessoas logo circularam, como se fosse um grande
evento e alguém fosse distribuir balinhas. Era uma mudança drástica de rotina
para aquelas humildes pessoas que passarão a vida a assistir televisão e brigar
com o comentarista do futebol. Aquele corpo, morto e inerte, não mais o faria.
Toda aquela multidão em volta do corpo, quase como se festejando, não a morte
do pobre diabo, e sim o fato da rotina ter sido desvirtuada por um fato, um
evento que seria marcado na débil memória de todos os ali presentes. Tudo seria
muito comentado durante as semanas que estariam por vir, analistas da tragédia
humana trariam deduções tão Sherlockianas que nem o próprio Sir. Arthur Conan
Doyle pensaria. Seria o “Estudo em Cinza” referenciando o livro deste
consagrado autor misturada a coloração o asfalto. Também seria um show para a
mídia. Chegaram antes que a polícia, nos carros identificados com o nome dos
canais. Lindas repórteres saltaram dos bancos da frente enquanto os câmeras
gordinhos com anos de guerra segurando aquele trambolho de uns 13 quilos por
cima.
Aquele senhor gordinho,
casado, câmera, ou cinegrafista, de número no cadastro de pessoa física tal e
identidade tal, com endereço eletrônico (vulgo e-mail) tal, domiciliado em um
casebre alugado que seu parco dinheiro pode alugar, donde reclama com a esposa
sobre as dores do ombro e sobre as vontades das repórteres patricinhas que
desfilam com suas vontades e vaidades, achando-se as Louis Lanes da vida, porém
indo cobrir eventos e feirinhas de lingeries e mortes de zés-ninguém.
Eram treze quilos nos
ombros.
Ela falavam com uma
maneira bonita, maquiagem muito bem feita. As mães devem sentir um orgulho
fantástico em mostrar para as amigas mais um homicídio que a filhinha que fez
faculdade com financiamento estudantil está cobrindo.
Acho que o certo é
cinegrafista.
O nome do morto não
importa.
Porém, sabe-se que um
dia antes ele estava bebendo num bar próximo a sua casa. Tinha sido note de
jogo, um jogo desimportante de times falidos daqui da capital. Vinte quatro
pessoas nas arquibancadas, dezesseis de um time e o resto dou outro. Eles
gritavam e os grilos, e os carros, e a desimportância falava sempre mais alto.
Um dos times conseguiu a proeza de fazer um gol. O atacante alcoólatra vibrou
como se fosse o final do campeonato mundial. Ele mesmo não sabia se mundial era
escrito com “L” ou com “U”. Por, fim, em uma gozação cotidiana de bar, o mal
aconteceu. Foram cinco ou seis facadas, ninguém conseguiu contar ao certo.
Foram facadas certeiras, na barriga, que transformaram a branca camisa de
partido político em vermelha, não fazendo alusão a nenhum partido com esta cor.
O homem saiu do bar cambaleando, sem pagar a conta e conseguiu andar até por
muito tempo, antes de desvanecer ao solo, morto, esquecido, inerte.
Mal
sabia ele que morrer seria a coisa mais importante que fez na vida.
A
polícia chegou com uma hora e meia de atraso. Eram três carros da polícia
civil, dois da polícia militar, uma ambulância (?) e um camburão do I.M.L.
Fiquei esperando pelo tanque de guerra, pela marinha e pelos caças franceses da
força aérea, porém acho que eles nunca chegaram. Fizeram perguntas sobre o que,
quem, como, aonde, que horas, e qual era a senha do Wi-Fi. Os peritos do I.M.L
mais sujavam a cena do crime do que analisavam, eles tomavam como evidência as
bitucas de cigarro que eles mesmos fumavam. Não muito longe dali, um capitão,
tenente, sargento, sei lá, da policia, falava termos difíceis como “elucubração”
e “a priori” para a repórter. Creio que devam ter comprado algum manual de
termos inúteis em latim ou coisa parecida. Normalmente eram policiais gordos,
com coletes à prova de balas parecendo babydolls, revolveres malemolentes
presos à cintura e pizzas de suor debaixo dos braços. Andavam de um lado para o
outro se arrastando e reclamando do calor. A patente mais alta sempre ficava no
carro gozando do ar-condicionado.
O
pobre homem é jogado em uma caixão de metal sujo, e esta caixa de metal é
empurrada para dentro do camburão. Sua última carona no Uber fúnebre. Desta vez
não havia nenhuma recém viúva dando escândalos e beijando o crânio inerte do
presunto. Desta vez não tivemos tantas lágrimas. Creio eu que até alguns fogos
de artifício soltaram, mas não por ódio ao que morreu, mas sim pelo evento,
pela quebra de rotina, pela multidão. Por terem visto gente dos bairros nobres
pisando naquele asfalto carcomido, que é apenas lembrado de quatro em quatro
anos. A favela ou comunidade terá sua visibilidade nos jornais. As pessoas
almoçarão vendo o bairro da periferia e seu morto famoso.
Pobre
do diabo que morreu. Porém fizera algo de notável na vida. Tomara algumas
facadas e fora cambaleante morrer em um lugar sereno. Poderiam até fazer
estátuas em homenagem a este inútil, poderiam visita-lo no cemitério, deixando
flores, deixando mensagens. Todos os jornais do Brasil noticiariam que alguém
levou um tanto de facadas, não disse “et tu brute” e caiu de cara no chão,
manchando o asfalto velho do prefeito velho da cidade velha do bairro velho. A
CNN noticiaria sua morte com muito pesar, a Al Jazira noticiaria seu
falecimento com muito pesar. O presidente dos Estados Unidos da América faria
um minuto e silêncio em sua homenagem, durante a abertura do Super Bowl. Tudo
em memória da morte daquele pobre diabo que foi defender seu inútil time por
ter perdido de maneira deprimente para outro inútil time de um esporte tão sem
graça quanto o futebol.
Porém
todos tem memória curta.
Falariam
sobre o homicídio durante algum tempo.
Falariam
do próximo homicídio: Criança que levou quatro tiros na cara por dívida de
droga.
Falariam
do estupro da menina de quinze anos, efetuado pelo seu próprio padrasto na cama
da mãe.
Falariam
do roubo de carro nos bairros próximos, e como os bandidos atropelaram uma
família inteira que voltava da praia.
Falariam
do covarde caso do vendedor de DVD’s piratas que fora levado aos arrastes de
casa por ainda vende este tipo de mídia, mesmo com a invenção da Netflix.
O
povo tem memória curta.
E
sobre o morto? Tão inútil quanto antes.