sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O músico ignorado


Tudo inicia-se com o barulho de um zíper.
Todos conversam e sorriem, as mesas são pequenos centros de atenção, muitos riem, muitos acenam, um casal se beija, outro casal se beija. A senhora se incomoda com a demonstração de amor e afeto de jovens numa mesa mais distante. Ninguém, de fato, se importa um com o outro. Como disse, ali é uma galáxia de pequenos pontos luminosos .
As torres de chopp lembram prédios gigantescos e amarelos, os sabores se misturam, crianças conversam, adultos conversam. O barulho da microfonia e o músico arrumando o seu lugarzinho são quase despercebidos naquele mundo imenso.
 Sorrisos.
- Boa noite!
No ar o cheiro da fritura se mistura ao ar condicionado. Garçons fazem contorcionismo para passar entre as mesas trazendo suas bandejas do Mcdonalds, o "M" sempre está virado para você. Mastiga-se, mastiga-se. Ele tem oito anos de idade, está com sua tia para comprar roupas no shopping quando o pior acontece.
O violão já está fora da capa, sua madeira brilhante, os cabos ligados nas caixas de som, o copo de cerveja sobre o banquinho. Ele diz:
- Boa noite!
Chão sujo! Ele tinha oito anos quando o pior aconteceu, o refrigerante caiu, o garoto chorou, a tia disse que tudo bem e pediu outro. Mas o refrigerante morto ainda estava lá, logo seus restos mortais já estariam limpos, e com a rapidez da faxineira, o chão não ficaria grudento, porém, mesmo assim, todos que passam olham para o cadáver daquele copo de Coca-Cola de 500ml.
A música acabou, por extinto aplaudem, educadamente se diz "obrigado" mas no fundo, ou melhor, na superfície ninguém sabe qual música fora tocada.
- E agora vou tocar para vocês...
O casal de namorados jovem.
Ele a espera há uns 15 minutos. Ela apareceu com seu vestido florido e com seu sorriso, ele sorrira também então beijaram-se. Nada disseram, apenas pediram o que comer. Entreolharam sorridentes, ele brincava com um folheto de plano de saúde, dado no primeiro andar.
- Como foi seu dia?
- Bem, e o seu?
- Ótimo.
Ela nota que esta conversa é a mesma do Whatsapp. Ela nota que é tudo repetitivo. Com o "M" virado para eles, suas bandejas vermelhas sustentavam dois hambúrgueres, dois copos de refrigerante (Diet para ela) e batatas fritas. Ninguém agradece o garçom.
Aplausos. 
Já se foram 18 músicas e duas horas.
- Obrigado, toda sexta-feira estou aqui para tocar o melhor da música para vocês!
Tudo termina com o fechar de um zíper.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Sorrisos

               
               Não mudo a fonte para escrever.
               Talvez se eu parasse de reescrever tanto tais coisas que não ousaria falar.
               Em cada passo profundo, em cada poça, em cada esquina.  Hoje, bem de manhãzinha, choveu. Chove há muito tempo aqui dentro, porém exatamente agora que eu fui notar que minha cidade interior está alagada com tanta água e tantas tempestades.
               Sorrisos falsos de bom dia. Humanidade, quem te conhece já sabes do que és capaz. Ainda sim me surpreendo todas as vezes que assisto o telejornal pela manhã.
               Aquele gosto amargo.
               Não mudo de fonte, uso a primeira que o editor de texto me serve. É uma fonte sem graça, sem nenhuma vida. Uma fonte sem alma. Eu considero tal fonte tão parecida com os sorrisos, com as conversas, com as piadas, com o pálido sol que entra pela minha janela enquanto eu trabalho no trabalho mais inútil da face da terra.
                Não mudo de fonte para falar sobre a inutilidade do mundo, não mudo de roupa para enfrentar os dragões do dia a dia. Dragões estes tão poderosos que me vencem de vez  em quando.  Lá em cima o pálido sol ofuscado pelas cinzas nuvens de uma temporada chuvosa. Logo as lágrimas cairão, escondidas, inúteis, tão inútil quanto o meu trabalho, tão inútil quanto os sentimentos daqueles que eu não conheço. Tão inútil quanto os sorrisos.

               Ainda há algumas cinzas para serem limpas. Tudo se foi com a água dos mares.
               A fofa areia permite deixar marcado por uma pequena eternidade a marca do que eu sou e do que eu fui. Sobre o que eu serei não sei ao certo, não saberei contar até quando eu irei. Tal qual carro desgovernado, o penhasco despenco de maneira cinematográfica, porém não haverá  ninguém para testemunhar. Tão inútil quanto o espetáculo de uma árvore caindo na floresta.
               Tão inútil quanto estes sorrisos.
               Não consigo mais traduzi-los em sentimentos, tais sorrisos são agora uma incógnita, uma grande dúvida, uma grande questão. O que eles deveriam representar? O que eles deveriam ser? Os vejo no ônibus, no meu inútil trabalho, nas conversas de pessoas desconhecidas, porém nada passam de meros códigos indecifráveis, meras movimentações musculares, mera química incompreensível.
               Um punhado de coisas inúteis.
               Um monte de pássaros sem asas.
               Um grão de semente estéril.
               Uma gênio dentre tantos ignorantes.
               Ninguém espera de fato a explosão. Ninguém consegue ver o relógio da bomba diminuir progressivamente até chegar a zero, de fato, o homem-bomba se mascara de sorrisos e de histórias e de piadas e de palavras de “tudo bem” antes de explodir e mudar, ou não, tudo ao seu redor.
               No fim das contas, todos os sorrisos são inúteis.