quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Inércia

Despertou junto ao sol naquela pitoresca manhã. Seu pequeno quarto escuro do qual uma mínima janela bem ao topo da parede permitia que alguns poucos e alaranjados raios solares iluminassem o recinto que misturava o cheiro de mofado com papéis molhados e coisa velha. Via-se o bailar dos mínimos grânulos de poeira dançando iluminados pela pífia cintilância do astro rei ao amanhecer.
            Respirou profundamente, lembrava um recém-nascido chegado ao mundo dos vivos. Seu peito nu sentia a mistura do frio de uma manhã incomum com o gelar do tecer dos dias.
            Respirou profundamente e olhou para o teto. O branco teto com amareladas manchas de sujeira e velhice, o branco teto de gesso com bordas trincadas prontas para cair e esfarelar-se tal qual polvilho velho no escuro chão. O ventilador que debilmente quebrava a barreira do atrito mantendo uma rotação única e monótona, fazendo o único ruído que destoava naquele silêncio enlouquecedor.
            Respirou profundamente sugando nacos de poeira esvoaçante do qual o fizera espirrar, sua garganta ardeu em uma ligeira brasa pela força empregada no espirro, seus olhos recém acordados lacrimejaram fazendo uma mínima salgada gotícula correr por sua face esfriando os espessos pelos da barba.
            Bem ao longe o mundo tomava forma. Crianças iriam para a escola, trabalhadores tomariam sua condução. Trânsito aconteceria e o mundo rotacionaria como de costume, fazendo o dia passar tão lentamente e imperceptivelmente que mal notaríamos o salto de uma segunda para uma sexta-feira. Envelheceríamos e morreríamos sem notar o hiato da vida neste meio termo soturno. O escaravelho diabólico subiria pelas entranhas daqueles que não notariam em si o calendário diminuir e cada vez mais e ficar mais fino ao passar dos dias.
            E deitado na cama, semidespido, pensou nas milhões de coisas que tinha deixado para hoje, coisas que adiaria por horas, dias, meses e talvez, quem sabe, anos. Pensou nas milhares de obrigações e atitudes que precisaria tomar, pensou nos montes de linhas, páginas, prazos, entregas, provas e estudos que precisaria fazer.
            Pensou no hiato dos dias.
            Primeiramente tomou consciência de tudo isto, o que já era sem tempo, e assim decidiu-se levantar.
            Decidiu-se levantar.
            Decidiu-se levantar!
            Decidiu-se, novamente, levantar!!
            Como um inválido em uma cama. Como um morto num caixão, o mesmo não conseguia movimentar nenhum músculo do pescoço para baixo. Suas mãos estavam paralisadas coladas ao corpo, da mesma forma que seus dedos, pés, pernas, cintura, tronco, braços e ombros não movimentavam-se.
            Decidiu-se, mais uma vez, levantar!!!
            Um pequeno rastro de suor brotou da fronte direita, seus olhos buscavam alguma amarra que pudesse o impedir de movimentar-se, alguma brincadeira que alguém fizera ou então algo sobrenatural. A luz solar que entrara não dissipara a escuridão que aquele quarto guardava em seu sepulcro. Apenas como o interior de um caixão, uma pequena fresta de vida e luz mantinham-se como consciência daquele que jaz a própria cama.
            Movimentara o pescoço de um lado para o outro impondo toda a sua força nos tendões, quase como tentasse movimentar uma grande rocha. A força que tomou fora tanta que sua face erubesceu. Sua garganta tornara-se brasa viva. Tentou gritar por socorro mas sua voz tornara-se um breve e esquisito chiado.
            Sentia-se como se um anão repousara sacanamente em seu peito. Um peso mortífero que lhe tirava o ar dos pulmões. Tentava recordar o que tinha sido de sua vida nos dias atrás para estar assim prostrado em sua própria cama sem poder mexer-se. Pensou que nada ocorrera além da rotina e do débil movimentar planetário pelos dias chatos e entediantes. Pensou nos milhares de prazos, nas milhares de coisas, nas contas para pagar, que venceriam em breve, pensou na quantidade de matéria que precisaria estudar, pôr em dia, e não poderia fazer. Pensou nos e-mails que precisava responder, pensou nos escritos a escrever e em muitas respostas que precisava dar nas redes sociais.
            Entrou em desespero e inutilmente tentara movimentar-se, sufocando-se ainda mais. Tentava gritar, mas apenas agudos sons saiam de sua garganta. Tentava movimentar porém apenas o seu pescoço pendia para frente e para trás. Debatia-se debilmente e aquele corpo não respondia.
            Seu desespero tomava conta de seu peito, seu coração tornara-se uma máquina de pulsar sangue.
            Suava de deixar a cama úmida, seu suor escorria pela pele porosa molhando-lhe as frontes fazendo os fiapos de sua franja grudarem à testa. Chorava tentado gritar por socorro, mas sentia-se engolido pela própria inércia.
            Pensava nos prazos – INÉRCIA
            Pensava nas datas -    INÉRCIA
            Pensava na matéria que tinha deixado para amanhã – INÉRCIA
            Seu grito era interno, seu desespero era real. Mordeu a língua com toda força possível tentando com a dor acordar de um possível pesadelo, mas por fim só tornou a piorar as coisas, pois agora sangrava a borrões pela língua. A dor angustiante e a falta de controle fazia sentir-se afogado. Inerte naquela cama sentia que pouco a pouco perdia o movimento do pescoço.
            Debatia-se contra isto, porém cada vez mais tornara-se difícil movimentar o músculo. Pensou na terrível possibilidade de seu coração paralisar e ele ali, naquele demoníaco quarto, perecer. Apodrecer e os vermes comerem sua carne ainda naquela cama que foi seu último sepulcro. Morreria de boca aberta com baratas e aranhas passeando pelas narinas e faringe, formigas alimentando de seus olhos.     
            Debatia-se debilmente.
            Como se alguém amarrasse seu corpo perversamente, logo seu pescoço foi paralisando e seu movimento ficou restrito apenas para os músculos faciais, mandíbulas e olhos. Tentou gritar mais uma vez porém agora nada mais saia. Sua respiração tornara-se cada vez mais dificultosa, porém como um castigo divino, o mesmo era poupado da morte, para que pudesse viver até o último milésimo temporal as agruras de tamanho sofrimento.
            Franzia o cenho como um teste para certificar que ainda assim havia algum movimento restante.
            O desespero tomara conta de cada memória sua. Inutilmente mantinha a língua para fora da boca, pois a mesma sangrava abundantemente e tinha medo de afogar-se no próprio sangue. Sentia cada músculo do seu corpo como imobilizado, sentia ainda o vento bater-lhe nos pés, sentia o calor das primeiras horas da manhã tomando conta do recinto, sentia infernais coceiras que o faziam delirar de desespero em coçar. Porém nada movimentava.
            Perguntou se isto era algum castigo.
            Perguntou se isto era o verdadeiro inferno cristão.
            Perguntou se isto era alguma brincadeira infante de algum demônio de esquecidos cultos do passado.
            Suas perguntas foram em vão e logo mal poderia pensar em novas. Sua língua paralisara para fora da boca e seu maxilar perdera o controle mantendo-se aberto. Temeu a chegada de algum inseto entrar-lhe pela garganta e sufocar lhe com a pior sensação de micro patas descendo o trato digestório o matando de maneira imbecil. Logo o único movimento possível era dos globos oculares, para cima, para direita, para esquerda e por fim, para baixo.
            Via abaixo o corpo imóvel, como um quente cadáver. Inerte na própria dor e solidão, não podendo gritar por socorro, não podendo mover-se. A sua direita, uma pequena escrivaninha com seu computador e algumas folhas. Prazos, escritos, provas, estudos, contas, pessoas. Tudo que deixara para amanhã nunca mais poderá ser feito. A sua esquerda a parede fria e crua que recostava sua cama. Uma pequenina, minúscula e inofensiva aranha tercia sua teia de maneira prática e sutil, quase de maneira artística. Pensar que este pequeno aracnídeo conseguia feitos melhores do que ele mesmo poderia fazer naquela situação. E ao olhar para cima via apenas o metódico e entediante teto de gesso branco com manchas amarelas.  Era o vislumbre do tempo que parava.  Era a imagem eterna de sua mente, aquelas manchas formariam alguma forma aglutina, desenhos e imagens de seres abissais dos quais não valeria a pena descrever por ser apenas um vago delírio de seu interlocutor.
            Logo ao tentar olhar para a janela, sentiu que o gesso branco não saia de suas vistas, debilmente tentava mover os olhos para os lados, mas nada o obedecia. O longo do branco teto manchado era a única paisagem que pela eternidade estaria fadado? Tentara mover novamente os globos oculares porém nada mais movimentava, uma lágrima involuntária desceu pelo rosto incomodando-o profundamente com uma coceira infernal. O único débil movimento que ainda sentia possuir era o ir e voltar dos pulmões em cada respiração do qual não controlava quando viria. Estava completamente inerte naquela cama. Um verdadeiro morto-vivo. Paralisado. Os minutos contando um a um, as horas contando uma a uma, os dias, os meses, os anos, as décadas, os séculos os milênios. Aquelas contas apodreceriam, aquelas provas passariam, os escritos cairiam no esquecimento, para a biblioteca da perdição e do sonho. Ele ali jaz, vivo porém inerte, em pleno desespero com sua cabeça extremamente funcional sentindo todas as sensações do seu corpo inútil, porém não podendo movimentar lhe. Não poderia dormir pois as pálpebras não mais funcionariam, fadado a encarar aquele pálido gesso com manchas amareladas pela eternidade.
            Pensou se este era o pagamento para os anos de procrastinação, pensou se este era o fim para aqueles que protegiam com unhas e dentes o pecado da preguiça. Seu corpo agora inútil pagaria a consequência por domingos que acordara além do horário do almoço, seu corpo pagaria com a dor de não mais mover-se por todas as vezes que reclamara infundadamente o parco trabalho que precisaria exercer. Pagaria pela eternidade, ou por enquanto resistisse aquela inimaginável situação por todos os dias que deixaria algo para fazer amanhã. Ali estava o castigo celebrado para os amantes do sono além de horas sutis.
            Estaria assim condenado.
            Por todos os minutos.
            Por todas as horas.
            Por todos os dias.
            Por todos os anos.
            Fadado a estar naquela cama por toda eternidade.

            Condenado por toda a eternidade a mais profunda inércia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário