Despertou junto ao sol
naquela pitoresca manhã. Seu pequeno quarto escuro do qual uma mínima janela
bem ao topo da parede permitia que alguns poucos e alaranjados raios solares
iluminassem o recinto que misturava o cheiro de mofado com papéis molhados e coisa
velha. Via-se o bailar dos mínimos grânulos de poeira dançando iluminados pela
pífia cintilância do astro rei ao amanhecer.
Respirou
profundamente, lembrava um recém-nascido chegado ao mundo dos vivos. Seu peito
nu sentia a mistura do frio de uma manhã incomum com o gelar do tecer dos dias.
Respirou
profundamente e olhou para o teto. O branco teto com amareladas manchas de
sujeira e velhice, o branco teto de gesso com bordas trincadas prontas para
cair e esfarelar-se tal qual polvilho velho no escuro chão. O ventilador que
debilmente quebrava a barreira do atrito mantendo uma rotação única e monótona,
fazendo o único ruído que destoava naquele silêncio enlouquecedor.
Respirou
profundamente sugando nacos de poeira esvoaçante do qual o fizera espirrar, sua
garganta ardeu em uma ligeira brasa pela força empregada no espirro, seus olhos
recém acordados lacrimejaram fazendo uma mínima salgada gotícula correr por sua
face esfriando os espessos pelos da barba.
Bem
ao longe o mundo tomava forma. Crianças iriam para a escola, trabalhadores
tomariam sua condução. Trânsito aconteceria e o mundo rotacionaria como de
costume, fazendo o dia passar tão lentamente e imperceptivelmente que mal
notaríamos o salto de uma segunda para uma sexta-feira. Envelheceríamos e
morreríamos sem notar o hiato da vida neste meio termo soturno. O escaravelho
diabólico subiria pelas entranhas daqueles que não notariam em si o calendário
diminuir e cada vez mais e ficar mais fino ao passar dos dias.
E
deitado na cama, semidespido, pensou nas milhões de coisas que tinha deixado
para hoje, coisas que adiaria por horas, dias, meses e talvez, quem sabe, anos.
Pensou nas milhares de obrigações e atitudes que precisaria tomar, pensou nos
montes de linhas, páginas, prazos, entregas, provas e estudos que precisaria
fazer.
Pensou
no hiato dos dias.
Primeiramente
tomou consciência de tudo isto, o que já era sem tempo, e assim decidiu-se
levantar.
Decidiu-se
levantar.
Decidiu-se
levantar!
Decidiu-se,
novamente, levantar!!
Como
um inválido em uma cama. Como um morto num caixão, o mesmo não conseguia
movimentar nenhum músculo do pescoço para baixo. Suas mãos estavam paralisadas
coladas ao corpo, da mesma forma que seus dedos, pés, pernas, cintura, tronco,
braços e ombros não movimentavam-se.
Decidiu-se,
mais uma vez, levantar!!!
Um
pequeno rastro de suor brotou da fronte direita, seus olhos buscavam alguma
amarra que pudesse o impedir de movimentar-se, alguma brincadeira que alguém
fizera ou então algo sobrenatural. A luz solar que entrara não dissipara a
escuridão que aquele quarto guardava em seu sepulcro. Apenas como o interior de
um caixão, uma pequena fresta de vida e luz mantinham-se como consciência
daquele que jaz a própria cama.
Movimentara
o pescoço de um lado para o outro impondo toda a sua força nos tendões, quase
como tentasse movimentar uma grande rocha. A força que tomou fora tanta que sua
face erubesceu. Sua garganta tornara-se brasa viva. Tentou gritar por socorro
mas sua voz tornara-se um breve e esquisito chiado.
Sentia-se
como se um anão repousara sacanamente em seu peito. Um peso mortífero que lhe
tirava o ar dos pulmões. Tentava recordar o que tinha sido de sua vida nos dias
atrás para estar assim prostrado em sua própria cama sem poder mexer-se. Pensou
que nada ocorrera além da rotina e do débil movimentar planetário pelos dias
chatos e entediantes. Pensou nos milhares de prazos, nas milhares de coisas,
nas contas para pagar, que venceriam em breve, pensou na quantidade de matéria
que precisaria estudar, pôr em dia, e não poderia fazer. Pensou nos e-mails que
precisava responder, pensou nos escritos a escrever e em muitas respostas que
precisava dar nas redes sociais.
Entrou
em desespero e inutilmente tentara movimentar-se, sufocando-se ainda mais.
Tentava gritar, mas apenas agudos sons saiam de sua garganta. Tentava
movimentar porém apenas o seu pescoço pendia para frente e para trás.
Debatia-se debilmente e aquele corpo não respondia.
Seu
desespero tomava conta de seu peito, seu coração tornara-se uma máquina de pulsar
sangue.
Suava
de deixar a cama úmida, seu suor escorria pela pele porosa molhando-lhe as
frontes fazendo os fiapos de sua franja grudarem à testa. Chorava tentado
gritar por socorro, mas sentia-se engolido pela própria inércia.
Pensava
nos prazos – INÉRCIA
Pensava
nas datas - INÉRCIA
Pensava
na matéria que tinha deixado para amanhã – INÉRCIA
Seu
grito era interno, seu desespero era real. Mordeu a língua com toda força
possível tentando com a dor acordar de um possível pesadelo, mas por fim só
tornou a piorar as coisas, pois agora sangrava a borrões pela língua. A dor
angustiante e a falta de controle fazia sentir-se afogado. Inerte naquela cama
sentia que pouco a pouco perdia o movimento do pescoço.
Debatia-se contra isto, porém cada vez mais tornara-se difícil movimentar o músculo. Pensou na terrível possibilidade de seu coração paralisar e ele ali, naquele demoníaco quarto, perecer. Apodrecer e os vermes comerem sua carne ainda naquela cama que foi seu último sepulcro. Morreria de boca aberta com baratas e aranhas passeando pelas narinas e faringe, formigas alimentando de seus olhos.
Debatia-se contra isto, porém cada vez mais tornara-se difícil movimentar o músculo. Pensou na terrível possibilidade de seu coração paralisar e ele ali, naquele demoníaco quarto, perecer. Apodrecer e os vermes comerem sua carne ainda naquela cama que foi seu último sepulcro. Morreria de boca aberta com baratas e aranhas passeando pelas narinas e faringe, formigas alimentando de seus olhos.
Debatia-se
debilmente.
Como
se alguém amarrasse seu corpo perversamente, logo seu pescoço foi paralisando e
seu movimento ficou restrito apenas para os músculos faciais, mandíbulas e
olhos. Tentou gritar mais uma vez porém agora nada mais saia. Sua respiração
tornara-se cada vez mais dificultosa, porém como um castigo divino, o mesmo era
poupado da morte, para que pudesse viver até o último milésimo temporal as agruras
de tamanho sofrimento.
Franzia
o cenho como um teste para certificar que ainda assim havia algum movimento
restante.
O
desespero tomara conta de cada memória sua. Inutilmente mantinha a língua para
fora da boca, pois a mesma sangrava abundantemente e tinha medo de afogar-se no
próprio sangue. Sentia cada músculo do seu corpo como imobilizado, sentia ainda
o vento bater-lhe nos pés, sentia o calor das primeiras horas da manhã tomando
conta do recinto, sentia infernais coceiras que o faziam delirar de desespero
em coçar. Porém nada movimentava.
Perguntou
se isto era algum castigo.
Perguntou
se isto era o verdadeiro inferno cristão.
Perguntou
se isto era alguma brincadeira infante de algum demônio de esquecidos cultos do
passado.
Suas
perguntas foram em vão e logo mal poderia pensar em novas. Sua língua
paralisara para fora da boca e seu maxilar perdera o controle mantendo-se
aberto. Temeu a chegada de algum inseto entrar-lhe pela garganta e sufocar lhe
com a pior sensação de micro patas descendo o trato digestório o matando de
maneira imbecil. Logo o único movimento possível era dos globos oculares, para
cima, para direita, para esquerda e por fim, para baixo.
Via
abaixo o corpo imóvel, como um quente cadáver. Inerte na própria dor e solidão,
não podendo gritar por socorro, não podendo mover-se. A sua direita, uma
pequena escrivaninha com seu computador e algumas folhas. Prazos, escritos,
provas, estudos, contas, pessoas. Tudo que deixara para amanhã nunca mais
poderá ser feito. A sua esquerda a parede fria e crua que recostava sua cama.
Uma pequenina, minúscula e inofensiva aranha tercia sua teia de maneira prática
e sutil, quase de maneira artística. Pensar que este pequeno aracnídeo
conseguia feitos melhores do que ele mesmo poderia fazer naquela situação. E ao
olhar para cima via apenas o metódico e entediante teto de gesso branco com
manchas amarelas. Era o vislumbre do
tempo que parava. Era a imagem eterna de
sua mente, aquelas manchas formariam alguma forma aglutina, desenhos e imagens
de seres abissais dos quais não valeria a pena descrever por ser apenas um vago
delírio de seu interlocutor.
Logo
ao tentar olhar para a janela, sentiu que o gesso branco não saia de suas
vistas, debilmente tentava mover os olhos para os lados, mas nada o obedecia. O
longo do branco teto manchado era a única paisagem que pela eternidade estaria
fadado? Tentara mover novamente os globos oculares porém nada mais movimentava,
uma lágrima involuntária desceu pelo rosto incomodando-o profundamente com uma
coceira infernal. O único débil movimento que ainda sentia possuir era o ir e
voltar dos pulmões em cada respiração do qual não controlava quando viria.
Estava completamente inerte naquela cama. Um verdadeiro morto-vivo. Paralisado.
Os minutos contando um a um, as horas contando uma a uma, os dias, os meses, os
anos, as décadas, os séculos os milênios. Aquelas contas apodreceriam, aquelas
provas passariam, os escritos cairiam no esquecimento, para a biblioteca da
perdição e do sonho. Ele ali jaz, vivo porém inerte, em pleno desespero com sua
cabeça extremamente funcional sentindo todas as sensações do seu corpo inútil,
porém não podendo movimentar lhe. Não poderia dormir pois as pálpebras não mais
funcionariam, fadado a encarar aquele pálido gesso com manchas amareladas pela
eternidade.
Pensou
se este era o pagamento para os anos de procrastinação, pensou se este era o
fim para aqueles que protegiam com unhas e dentes o pecado da preguiça. Seu
corpo agora inútil pagaria a consequência por domingos que acordara além do
horário do almoço, seu corpo pagaria com a dor de não mais mover-se por todas
as vezes que reclamara infundadamente o parco trabalho que precisaria exercer.
Pagaria pela eternidade, ou por enquanto resistisse aquela inimaginável
situação por todos os dias que deixaria algo para fazer amanhã. Ali estava o
castigo celebrado para os amantes do sono além de horas sutis.
Estaria
assim condenado.
Por
todos os minutos.
Por
todas as horas.
Por
todos os dias.
Por
todos os anos.
Fadado
a estar naquela cama por toda eternidade.
Condenado
por toda a eternidade a mais profunda inércia.
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