quinta-feira, 18 de agosto de 2016

O estranho caso da geladeira na calçada

           
             Havia uma geladeira no meio da calçada.
             Achei peculiar o fato de uma desavisada geladeira estar solitária no meio da calçada. Quando a vi pela primeira vez, ela ali, sozinha, sem ninguém para conversar. Enchi-me de questionamentos sobre como, quem, o que e quando ela fora parar ali, no meio da calçada. Sozinha sem outros utensílios domésticos para trazer coerência a cena. Ela, parada em frente ao ponto de ônibus onde costumamente eu desço quando venho do trabalho.
            Estaria esperando a condução?
            Havia uma geladeira, quando digo geladeira, eu faço isso sem aforismo ou tentando pagar de mestre da metáfora. É tácito. Uma geladeira, daquelas de esfriar as coisas, no meio de uma calçada, daquelas onde os pedestres não são atropelados (ainda) pelos carros.  
            Sabe quando olhamos algo de relance e ainda não acreditamos no que vemos. Quase quando vemos um vulto pelo canto dos olhos e quando olhamos novamente ele não está mais lá.
            A geladeira estava lá quando eu olhei novamente.
            Chegava a ser bizarro, chegava a ser incoerente. Havia uma geladeira, uma G.E.L.A.D.E.I.R.A. numa calçada do lado de um ponto de ônibus. Notoriamente ela não estaria ligada a lugar algum, não estaria gelando coisa alguma.
            Estaria alguém morando ali dentro?
            A Máfia teria escondido algum cadáver ali?
            Questionei-me durante alguns minutos antes de decidir voltar e desvendar o mistério da geladeira. Agatha Christie e Conan Doyle teriam orgulho de mim, dando uma de trupe do Scooby Doo e desvendando o mistério. Quando deparei-me ao grande monólito branco repousado na triste e esquecida calçada de paralelepípedos disformes, dos quais machucam os pés fazem velhinhos tropeçarem e caírem para a morte. Tinha a base bem cimentada ao solo, dias após descobri que não adiantou nada e a coitada foi furtada mesmo assim, era branca com um tom quase amarelado e não trazia nenhuma mensagem realmente glorificante que trouxesse alguma pista.
            As pessoas em volta apenas olhavam para ela, sem questionar ou ao menos possuir curiosidade.  As pessoas estão mortas ao nascer, impressionante!
            Prostrado em frente aquele grande mistério, quase como um explorador olhando para a tumba misteriosa do faraó, procuro algum detalhe, alguma evidência que pudesse mostrar a que fim aquele monólito doméstico possuía por estar ali, naquela calçada, naquele lugar. Poderia ser um Totem de alguma antiga e esquecida tribo indígena do qual amaldiçoara o forasteiro curioso com alguma alegoria terrível. Também poderia sair ácido de suas frestas corroendo-me a carne por ser curioso demais ou, pior, poderia ser uma bomba esperando um curioso ativa-la e virar uma eterna manchete nos jornais.
            Acho que estou com muitas horas de seriados.
            Mas era irrefutável a imagem que havia uma geladeira na calçada.
            Parada, silenciosa, completamente  inerte.
            Tomei coragem para desvendar o temido mistério, não conseguiria repousar no meu travesseiro e dormir uma noite tranquila se não resolvesse minha curiosidade humana. A curiosidade que levou o homem da caverna a lua é a mesma curiosidade que me fez puxar aquela porta de geladeira.
             Ainda que pudesse me assombrar com o que me esperava lá dentro, tanto quanto um filme de terror que telegrafa o susto para o telespectador com a ausência de música, o clima soturno e o compasso da cena.
            Meu coração palpitava fortemente, estava a um passo de desvendar o puro mistério de uma vida em um minuto. Claro que estou no máximo da minha extravagância narrativa (peço-me até francas desculpas se floreei esta narrativa com tantos detalhes obtusos que até fizera você olhar sua própria geladeira com outros olhos). Ao puxar aquela pesada porta, e adentrar-me naquela Narnia obscura de satânicos monstros, me deparo com o impensável.
            O inimaginável Lovecraftiano.
            O impublicável (mentira).
            Deparo-me com livros.
            Livros velhos, revistas, antigos encadernados. Bons livros.
            Explicando o processo: você toma um livro de empréstimo, sem precisar de cadastro ou qualquer outro tipo de formalidade, e assim o devolve depois. Ou doa outro livro no lugar, a escolha acaba sendo da pessoa que levou. Era uma magnânima surpresa encontrar tal projeto em uma cidade que pouco a pouco tornou-se viciada nos escuros espelhos que são os aparelhos de celulares, e a solidão inimaginável que existe no microcosmos das redes sociais.
            Tomei alguns livros de autores para mim desconhecidos. Descobri boas perolas da literatura do qual passaria por minha vida completamente despercebidas. Tomei os livros prometendo levar alguns outros para manter a corrente literária. Pela falta de costume da gentileza humana, senti-me um ladrão saqueando tais bens de uso comum. Ainda olhei para trás algumas vezes antes de chegar à esquina esperando alguém me dizer que eu precisava devolvê-los.       
            Tais livros estão na minha frente neste exato momento. A geladeira continua lá, guardando bravamente tantas obras silenciosas da nossa opaca literatura, dentre outras revistas e afins. Aquele monólito doméstico trazendo curiosidade para olhos curiosos e passando despercebidos para os escravos dos escuros espelhos, lá está silenciosa, misteriosa, metálica. Uma geladeira na calçada desenhando uma paradoxal paisagem da minha cidade.

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