segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Ruptura

             
             
            
              Do alto do prédio aquela garota pedia socorro. Era um socorro velado, algo como um silêncio silente que só ela mesmo poderia de fato entender. Não era muito alta, possuía cabelos escuros e rosto muito claro. Olhos grandes e expressivos. Respirava forte, seus pés pequenos e descalços equilibravam-se entre o abismo fatal do décimo sétimo andar e a janela do seu quarto. O vendo forte balançava seus longos cabelos dos quais confundiam-se com serpentes "medusianas" vivas em sua própria vontade. Seu roxo vestido balançava como a capa de um super herói ao implacável vento daquela distante altitude. Seus dedos pequenos seguravam na beirada da janela como um único ponto de equilíbrio. As unhas pintadas de cor azul-bebê traziam traços de nervosismo, alguém que com pura ansiedade talhou e descascou aquele pífio trabalho artístico e feminino de pintara as unhas. Seus tornozelos tremiam diante a altura, sua respiração quase acompanhava o seu coração de tamanha força.
            Lá em baixo, na garganta do profundo abismo urbano, policiais e bombeiros esperavam pacientemente. As luzes piscantes em vermelho claro coloriam os quarteirões. Um pequeno público assistia atentamente ao teatro vivo da menina dependurada no prédio. Seja qual for, seria manchete nos jornais.
            - Vai ser um bom estrago se você cair daí – diz uma voz pelo lado de dentro da janela, vinda do quarto de onde a garota residia, vinda por detrás a surpreendendo e fazendo-a agarrar com um pouco mais de força a parede sustentadora daquela pequena luz de vida.
            - Não se aproxime, eu pulo! – seu tom ameaçador de voz era tremelicante ao que dizia, quase como alguém que tenta cantar embargado de choro, não trazia credibilidade, mas ninguém gostaria de pagar para ver.
            - Eu sei que você pula. Aliás, eu também gostaria de pular. É uma queda rápida até o chão, nem se aproveita o voo.
            - Não se aproxime, eu pulo! – ela mesmo não sabia o que estava pensando. Via-se num turbilhão de sentimentos inexplicáveis, de fatos desastrosos, quase como uma ladeira perpendicularmente infernal sua via tinha tomado rumos sem rédeas. Os cavalos estavam mortos e ela descia a ladeira. Ela tinha a extrema necessidade de tomar o controle de algo em sua vida, tinha a extrema necessidade de saber que aquilo, por mais que fosse um pedido de socorro um tanto quanto midialesco, poderia servir um propósito maior. Existia uma vaga possibilidade dela realmente se jogar, mas isto não entra na equação.
            - Sou recém chegado no prédio, moro aqui no apartamento da frente – ela olhou para ele com mais atenção - quando me disseram que a cidade era movimentada, realmente não estavam mentindo!
            Ela sorriu.
            Sorriso que há tanto não aparecia em seu rosto.
            Os quinze músculos responsáveis pelo sorriso fizeram seu trabalho, há tanto estagnados na própria tristeza. Ela sorriu, sorriu como uma criança curiosa vendo desenho animado pelo sábado matutino. Era um sorriso nostálgico, uma centelha de segundo que demoraram anos para passar naquele microcosmo. Naquele pequeno ato existia uma longa história até a chegada daquele momento, coisas que não estão a convir, coisas que deixamos passar desapercebidos nos ônibus, nas ruas, nas casas, nas nossas famílias. Existem muitas pessoas próximas a se jogar de uma janela.
            Outras já estão em queda livre.
            - Qual é o seu nome – o rapaz pergunta, o nome dela não é importante nesta história. Ela responde com um leve gaguejar e retribui a pergunta.
            E ele responde.
            Ela então sorri novamente, diz que o seu nome é bonito e inconveniente.
            Então ele diz:
            - Isto é culpa do meu pai – ambos riem - me diz, o seu ar-condicionado quebrou e você resolveu tomar um ar fresco?
            - Seria meio polêmico não é? Nada disto, também não sei o que eu estou fazendo aqui. Sinto como se eu tivesse perdido o controle de minha vida, como se perdesse as rédeas e que tudo fosse algo sombrio, algo que não traz mais luz. As vezes sinto que tudo o que como não passa se serragem, que tudo que bebo não passa de uma água de torneira com gosto de cloro. Sinto uma dor, uma dor bem aqui – ela aponta para o peito – que me sufoca sem um motivo aparente. Eu aqui, eu sinto que posso dar um fim a todas as estas incertezas. A todas as cobranças, a todas as minhas promessas infundadas. Eu aqui posso me sentir livre de tudo, posso ter a coragem de ser uma covarde. De me entregar a covardia porque depois que me jogar, simplesmente tudo será apagado como lágrimas ao vento.
            O cenário é o pôr do sol entre os prédios cinzas, as nuvens com uma coloração febril e um acinzentado triste conduz a todo o ato. Um vento sentimental varre as pessoas que assistem tudo em silêncio.
            - Tudo que você me diz é muito bom de se pensar – o rapaz diz se projetando para fora da janela, chegando mais próximo da garota. Ela por reflexo se afasta lentamente ainda com o braço esticado segurando a borda da janela, os pés comprimidos naquele pouco espaço e seu vestido esvoaçante no sentido do vento, quase como uma bandeira púrpura – vendo pela sua óptica, faz todo o sentido do mundo e eu gostaria de me jogar junto contigo, deixar minhas obrigações e as promessas infundadas que um dia eu fiz para milhares de pessoas. Elas pensam que sou um tipo culto conhecedor, muito inteligente e muito sagaz, porém tenho tantos medos e incoerências como todos, além mais.
            Uma lagrima desce pelo rosto da garota e o rapaz continua:
            - Mas não adianta se dar para o abismo final. O nosso tempo está contando e possível que nunca façamos nada notável, mas nossos sonhos nos mantêm aqui mesmo quando eles se tornam impossíveis. Sonhos são coisas que podemos alcançar, podemos mudar, podemos criar novos. Temos nossas responsabilidades, temos aquilo que chamamos de problemas, isto faz parte de nós, isto é o que nos transforma em humanos. Somos a mistura do nosso cotidiano condensada em nossas responsabilidades. O dia a dia que nós traz aqui, as alegrias, as tristezas. Tudo converge a mudança. Não estou aqui para te salvar, não estou aqui para ser o herói da história, mas dou-lhe minha mão para que este estranho encontro possa se tornar uma boa conversa.
            Ele estende a mão.
            E aqui é o momento da ruptura.       
            Você sabe que existem dois destinos.
             1 – Ela diz que sente muito e se joga. Os bombeiros chegam segundos depois, porém nada mais poderia ser feito. Ela cai e todos assistem o desfecho do corpo que cai no frio coração de pedra. As janelas passam rapidamente, o seu reflexo em um memento célere impede que ela se veja pela última vez, o salto de fé, ela vê o rosto daquele rapaz se distanciar, se distanciar até virar um ponto distante, um negro ponto no céu cinza daquela triste cidade. A queda é eterna, todos silenciam como se fosse um pré-minuto de respeito. O vestido roxo como uma asa quebrada de um pássaro baila na correntes de ar junto com os negros cabelos, sua queda em espiral é assistida e lamentada até o baque final. Seco e duro no sólido chão. Um baque que nunca seria esquecido por aquela cidade, um baque sonolento, pesado, forte e frio. Jaz o corpo dela inerte em uma poça do escarlate sangue que um dia foi bombeado por aquele coração que, também inerte, se contraí pela última vez.

            2 – Ela, insegura, tenta agarrar a mão daquele rapaz, temendo desequilibrar, já que o medo da morte voltou a sua vida, busca com cuidado segurar-lhe. Ele a puxa suavemente ajudando-a a subir novamente no parapeito e enfim adentrar o quarto. Os bombeiros chegam segundos depois, o quarto fica lotado de gente e ela o abraça, ele diz que tudo vai ficar bem, que ela tinha sete vidas. Ele faz as promessas que não poderia cumprir e ela as acata, fazia parte da vida, são mentiras sinceras. Sorriem um para o outro. Seu coração bate tão forte que parece que vai explodir. Os braços do rapaz tremem, lentamente vão saindo daquele lugar, médicos perguntam se ela está bem mas tudo aquilo está abafado, todo o som está silente. A história é sobre aqueles dois, sobre o que se passa na mente de milhares e sobre quantas pessoas não se jogaram no abismo de suas próprias perdições. O medo, o escorregar e cair. O desvanecer.
            Se eles estão bem, não posso dizer. Como poderia falar sobre a vida daqueles que passam quase que como desapercebidos por cadeiras vagas nos ônibus, ou nas filas de banco ou, por fim, nas mesas das praças de alimentação. Nunca poderemos descobrir o que cada elo de vida e qual momento de ruptura trará a escolha que decidirá o destino de tudo. Tudo é a questão de uma simples escolha.
            Sobre o destino dela, deixo para o leitor.
            Tudo depende do ponto de vista.

            Se o seu copo está meio cheio ou meio vazio.

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